luz noturna

o processador não atende aos requisitos mínimos, teclado parou mês passado, se não queimei minha memória esse dellzinho tá rodando desde 2014. só coube no bolso porque o dono do bar comprou à vista e parcelei no meu salário. na hora foi sem juros mas, quando o bar fechou, não quiseram acertar férias nem 13º. recebi menos da metade do que o advogado orçou. me dei de presente um ano pra ler e escrever. já olhei tanto pra essa tela que agora uso óculos e, toda dez da noite, programei pra ativar a luz noturna que (acho) força menos a vista. ontem saindo do trampo o fusca parou num sinal vermelho: esfreguei os olhos, esfreguei até me buzinarem mas tudo em volta seguiu desfocado.

teto de vidro é um bagulho loco, teve a mina que sentou olhar junto mas levantou quando ouviu que eu não vivia sozinho. na praça de alimentação do shopping Estação dá pra ver a chuva caindo. fico pensando na vida. uma parceira do trampo me deu a letra esses dias, que ser homem é ter tipo uma cama elástica em baixo dos erros e não só porque amortece, mas porque impulsiona a continuar vacilando. tipo um conhecido meu que tá de rolê com uma conhecida minha. ele vacilou com ela, ela falou pra ele que ficou de cara, mas só caiu a ficha dele quando flagrou que eu tava de cara. qual ficha caiu? a de que vacilou com ela, a de que vacilou comigo? já fiz dessas. outro parceiro me disse que a gente vê muito pouco: que as fitas acontecem e que, se pa, a gente se liga depois.

só Pinhais/Rui Barbosa Pinhais/Rui Barbosa e nada do Centenário/Campo Comprido brotar. quando veio, tava tão craudiada a plataforma que quem tava dentro não conseguia sair, quem tava primeiro não conseguia entrar, quem tava atrás passava logo por cima e a porta deu três vezes nas costas de uma senhora que foi sendo pilada e prensada no bonde. o escape soltou fumaça. a viagem seguiu sem brisa. esses dias tava de cócoras enrolando um cigarro e vejo uma mão e um distintivo chegando

– ô cidadão

– salve

– que porra é essa?

– tabaco

– quê?

tirei o pacotinho

– tabaco

chegou a braguilha bem perto da minha cara. me deu dois tapas no ombro. disse sorrindo

– ahhhhh. tá tranquuiiilo. é que olhando assim não dá pra saber o que que é o que pô, levei um susto

– também levei

– sou policial. não tem porque ter medo

saiu.

já me liguei que, depois de pegar a ficha e entregar o pedido no trampo, me curvo pra frente tipo um samurai. não sei da onde. vi num clipe esses dias uma galera de adolescente tendo o cabelo raspado, os corpos uniformizados, as cabeças, uma a uma, sendo empurradas pra baixo por um carcereiro portando cassetete e molho de chaves. às vezes queria uma kemuridama pra jogar no chão e sumir na fumaça, às vezes queria cantar Purple Rain num estádio lotado, quando falta perna na bike e o fone tá com mal contato, lembro de algum lance de alguma pelada que joguei e que foi massa, um passe que dei, um gol que fiz. quando vejo, escuto, quando me revolta alguma fita tipo parte da torcida do Athletico Paranaense fazendo gestos racistas pra torcida do Atlético Mineiro, não calo. o tempo é agora e se escrevo é como quem costura: na luz.

tem uma crônica da Clarice Lispector que começa numa trocação de ideia bizarra com um taxista e termina no corpo de uma criança sendo velado na igreja. pelo menos isso é o que lembro. difícil saber onde começa e termina uma memória mas quem escreve pode aguentar até os 77 como Rubem Braga, até os 41 como Lima Barreto. depende de muita coisa. me perguntaram esses dias onde eu queria estar daqui a seis meses e respondi que vivendo. 24 e 31 o café vai até às três da tarde.

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