Lepetizapeti

Eis que completo hoje o vigésimo artigo para este Plural.

Números redondos têm alguma mística que eu, sujeito sem misticismos, não consigo captar. Mas gosto.

E hoje me vieram à memória os tempos em que eu era professor de adolescentes no Ensino Médio. Embora na maior parte de minha carreira eu tenha trabalhado com o chamado terceirão, foi de um período em que dei aulas para o segundo ano do Médio que me surgiu essa lembrança. No terceirão, o programa de literatura era basicamente pautado pela lista de livros escolhida para o vestibular da Universidade Federal do Paraná. Eu tinha algumas broncas na época, achando que poucos escritores que figuravam na lista eram capazes de provocar questões nos xovens de então. Dando aulas para o segundo ano, arrisquei: galera, uma leitura obrigatória que eu gostaria que vocês fizessem é d’O apanhador no campo de centeio, do J. D. Salinger.

Eu discuti com eles uns pontos que julguei pertinentes antes que lessem o livro. Não falava de enredo, linguagem, nada disso, só fazia aproximações com temas do tipo rebeldia, tristeza, inadaptação, incomunicabilidade, diferenças geracionais etc.

No dia em que marcamos para falar especificamente do livro, achei curiosa a reação dos alunos, tão disparatada entre si, tão polarizada quanto possível: “esse Holden é um chato, professor”, “eu acabei lendo duas vezes, professor”, “que cara mais mal-humorado, professor”, “o livro me fez pensar em mim, será que eu posso falar em particular, professor?”, além, é claro, de quem não leu e não gostou. E de quem não leu e provavelmente gostaria. Muitos alunos que não leram, aliás, agiram à maneira do protagonista Holden Caulfield, que provavelmente não leria um livro de leitura obrigatória, imposto por um professor símbolo de autoridade. Autoridade é para ser questionada, conscientemente ou não; autoridade, na cabeça de muitos adolescentes, é aquele farol no mar de onde se deve justamente fugir ou bater de frente, num típico caso edípico: fugir da autoridade “paterna” para não matá-la. Bem, o final da tragédia de Sófocles muita gente sabe. O Google sabe, pelo menos.

Metade da turma queria falar de Caulfield, metade achava tudo um saco e não via a hora de comprar o lanche na cantina. O que fazer com a metade indiferente ou raivosa? É um fracasso pedagógico? Será que o professor vai chegar a um momento da carreira dispondo das técnicas mais avançadas de ensino, capazes de fazer todos os seus alunos se interessarem por aquilo que ele traz? Ou é o caso de culpar essa geração que não quer nada com nada, as mazelas de uma educação que não consegue sequer fazer alunos já grandes se interessarem por um clássico?

E, mais uma pergunta: o que lepetizapeti está fazendo ali no título?

É sobre os pequenos apetites que eu gostaria de pensar. Vem-me à cabeça uma sonoridade francesa, les petits appétits, que se pronuncia saborosamente lepetizapeti (atenção ao segundo “e”: boca de “o”, som de “e”).

Wassily Kandinsky

Aprendemos, claro, a gostar de coisas antes detestadas, estou longe de achar o ensino algo inútil por supor que estaria apenas dentro do sujeito aquilo por que ele vai se interessar na vida – afinal, de onde viria o que está dentro dele?

Em se tratando de apetite gastronômico, sou um cara que, ora, vejam só, hoje gosta de coentro. Julguem-me.

No entanto, o que nos é oferecido pelo mundo exterior tem menos ou mais capacidade de nos provocar uma questão, tem menos ou mais capacidade de enlaçar e mover um desejo que nos habita e que pode estar à flor da pele ou adormecido. Há coisas que nos apetecem, pelas quais demonstramos nossa apetência, ou seja, nosso apetite, nossa ânsia de querer mais, de trinchar e destrinchar não somente frangos, mas os objetos de conhecimento que se nos colocam à frente e que, antropofagicamente ruminados, nos formam como sujeitos, nos dão força intelectiva e emocional, nos alimentam. Se somos o que comemos, o ditado vale para o conhecimento menos ou mais sensível, que passa reto ou nos afeta. O que vem de fora pode ser ou não saboroso, mas nunca apenas em si mesmo, e sim devido ao apetite interno que devora o objeto-livro, espalhando-o pelo corpo, memória e vida, ou que mastiga sem vontade, deixando quase tudo no prato.

Desse modo, eu posso ter alunos muito competentes, mas que não mostraram apetência ao entrar em contato com a vida de Holden Caulfield. Talvez eles estivessem degustando deliciosamente cadeias de carbono ou polinômios. Vou julgá-los ignorantes por não compartilharem do meu apetite?

Minha carreira de professor, até o último momento em que entrei numa sala de aula – pelo menos diariamente –, buscou unir competência e apetência. Não quero dizer que tenha sido competente, mas a apetência estava lá. Quando o apetite esmoreceu, achei por bem sair em busca de outros objetos em torno dos quais investir o meu desejo. Mesmo sabendo que o desejo não tem objeto, é bom acreditar que tenha.

Wassily Kandinsky

É certo, existem professores sem apetência e competência, existem alunos que não criam laços nenhuns com o que a educação escolar lhes propõe. Talvez a tarefa da educação – que a psicanalista francesa Françoise Dolto sugere trocar por humanização – seja oferecer cardápios sem querer fazer do aluno um glutão, sem que ele se obrigue a se interessar por tudo. Que sirva acepipes variados e bem feitos, mas deixe o sujeito escolher seus pratos principais. Creio ser indesejável desejar tudo. Assim como não nutrir desejo por nada, numa postura depressiva, não traz bons prognósticos. É preciso enlaçar objetos e querer deles um algo mais que nunca se esgota, que nos põe em movimento, uma vez que o desejo não se contenta de uma vez por todas com um objeto específico, e é esse querer mais que faz a nossa paixão, o nosso desejo, o nosso apetite nos levar junto, nos mover e comover (já usei tanto essa palavra, mas vou repeti-la. Afinal: vigésimo texto).

Vigésimo texto e quem ganha é você! Escolha o seu final:

Final 1:

Holden Caulfield pode não ter nada a dizer a muitos jovens, e pode ter muito a dizer a vários deles. Minha preocupação como professor era tentar garantir uma leitura competente e mostrar a minha apetência, mas impor apetência a eles já seria um escorregão para a ignorância.

Final 2:

Há verbos que não suportam imperativo: “deseje isso!” é um deles. Vai lá, leve seu apetite para as coisas que você faz, alguns vão querer se abancar e comer contigo, outros preferem menus diferentes. O que não se pode é parar de comer.

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