Gripe forte. Dias e dias com febre, acessos de frio. Dor no corpo de tanto ficar deitado. Trocando as camisetas empapadas de suor, comendo qualquer coisa, sem fome, sem sentir o gosto de nada. Os olhos doem no fundo das órbitas. Não consigo ler nem ver um filme, só penso, farrapos de pensamentos que não se completam. Ibuprofeno, Ben-u-ron. Viro de um lado, depois de outro, de costas, de frente. Me cubro, me descubro. Apoio a cabeça numa almofada, depois em dois travesseiros, depois em um, o pescoço arde de tanto ficar arcado. Lembro do meu filho no outro lado do oceano, indo para a faculdade, para o trabalho, uma saudade funda varre o meu peito, parece o vento de outono que assola o terraço lá fora. Chove forte desde ontem, portas e janelas tremem, estalam aos socos do vento, as agulhas da chuva tamborilam no telhado, nos vidros. Não vejo meu filho ao vivo há muito tempo, não aguento mais falar com ele só por aplicativo. Preciso ir ao Brasil e abraçá-lo com força, sentir o seu cheiro, preciso tanta coisa, terminar meu romance, cuidar da editora, escrever uma crônica. “Está quieto”, diz Rute, mas eu vou até a cozinha, bebo água e mais água, não aguento o peso da testa, dos ombros, volto para o quarto. A cama a essa altura já é o convés revirado de um barco assolado pela febre, pelos ventos internos, oscilando ao sabor das ondas de frio e calor, dos pensamentos intempestivos. Rute troca os lençóis, eu tomo banho, mas não adianta, logo me sinto pegajoso de suor, me coço todo, principalmente a barba, principalmente a nuca. Durmo a qualquer hora, acordo de dia, acordo de noite, tanto faz, sempre falta clareza, tudo é turvo. Meu filho mais velho está tão longe, e os outros, como estarão lá do outro lado do rio? Há quantos dias estou aqui? Posso perder os trabalhos, eu já devia ter entregue pelo menos dois livros editados este mês, preciso falar com o distribuidor, com algumas livrarias, é tão difícil publicar livros, pouca gente lê hoje em dia, mas onde, onde está Rute? Tenho que melhorar as leituras públicas dos meus textos, ensaiá-las, divulgar mais a minha obra, gostei do jeito que li no Sarau Profano, aquilo ficou bom. O tempo urge, meu Deus, tenho cinquenta e oito anos e a vida passou com um furor cegante, um turbilhão de equívocos, intrigas, problemas, desastres de amor, trabalhos vazios que não deixaram rastros, pelo menos escrevi aquele filme, a atriz ficou tão bem no papel principal, o poema sobre o cão também não ficou mal, aquele crítico elogiou, e você tem os seus filhos, belas pessoas, tão queridas, para onde foi a Rute? Sinto como se tivesse perdido o amor pelas coisas, vivesse por hábito, por vício, em alguma curva da estrada deixei cair a alegria do meu riso – este travesseiro é muito baixo, a almofada muito alta, puxo o lençol e dois cobertores, jogo tudo de lado, encharcado de suor, depois sinto os pés gelarem, arrepios sobem pela coluna – e me dói o Brasil, o Brasil foi dominado pelos bárbaros, pela barbárie, a violência come solta, Lula precisa ganhar, o povo precisa acordar do pesadelo fascista – Portugal também não resolve nada, tantos burgueses, tantos conservadores de esquerda e de direita, tantas almas velhas, tanto egocentrismo, a Europa velha de rapina e o Brasil bárbaro violento se misturam, parece não haver saída –
– onde estou? Ibuprofeno, Ben-u-ron, os médicos disseram que não podem fazer nada a respeito, uma gripe comum, é ficar na cama, Rute troca os lençóis novamente, equívocos, só equívocos e intrigas e problemas, desastres de amor, meu filho vai para a faculdade, os outros andam por Lisboa com seus amigos, não querem saber de gente mais velha, é assim mesmo, as árvores renovam suas folhas para recompor a primavera, sou a folha amarela, meu papel agora é cair, aos poucos, desprender-me da haste – para que li tantos livros? todas as leituras se esvairão comigo, mas foi tão bom, tem sido, vivo melhor nos livros, nos textos que escrevo, mas tenho que melhorar minhas leituras públicas, foi muito boa aquela no Sarau Profano, acertei o tom, não me contive nem me derramei. Puxo o lencol e as cobertas, ainda tremo, vejo seios e nádegas e quero abocanhar tudo, mas me escapa, vejo ao longe um ventre que me excita até a exasperação, peço o edredom, trinta e nove e meio, penso nos que escrevem difícil para parecer profundos, penso no nariz empinado da Europa depois da pilhagem oceânica, penso nos ratos roendo o Brasil, ratos pastores, ratos milicianos, ratos jornalistas, ratos de gravata no senado na Câmara na presidência, meu país doente, meus desatres de amor, intrigas, não sinto o gosto de nada. Rute me examina, carinho e paciência, ela tem uma paciência admirável, sou sempre tão excessivo, disperso, deslocado, quero substituir este mundo pelo que invento, não dará certo, aqui é o chão e estes são seus pés, trate de olhar pelos outros, os livros não sofrem nem te estenderão a mão, jogo os travesseiros no chão, bebo litros de água, esta cama, meu corpo é um barco, me nauseia e anda a deriva, onde estou, como vim parar aqui, ainda agora eu era jovem, concebia um caminho, concebia um homem, um futuro, agora o quê? Tenho que lançar o meu terceiro e o meu quarto livros, estão prontos, são bons, por que me saboto, preciso divulgar mais a minha escrita, jamais desistir, prosseguir, há vida lá fora, entre as pessoas, se eu pudesse ler, se pudesse completar um pensamento, escrever, meu queixo treme, este quarto é qualquer quarto e nunca fui além das minhas próprias paredes, não para de ventar há dias, fora de mim, dentro de mim, as portas e janelas tremem, o tempo está feio, meu corpo está feio, meu país está feio, onde foi que deixei o termômetro, onde foi que deixei a esperança? Vou derreter, vou sumir nesta cama anônima, nesta vida anônima, como o Giovanni Drogo do Deserto dos Tártaros, como minha avó, como a avó de minha avó, elas sumiram, ninguém permanece, a vida é este hausto dolorido, vir à superfície por um breve momento e depois afundar novamente no abismo, cadê o travesseiro? Sonho com ladrões, assassinos, uma criatura demoníaca linda que me acaricia e quer me destruir, acordo, durmo, migro de sonho em sonho sem jamais chegar inteiramente à realidade –
– então durmo fundo. Não sonho com nada. Acordo. É dia. Pego o celular, quase uma da tarde. Estou moído, mas já não me sinto confuso. Já não tenho febre, os pensamentos estão serenos, embora lentos, meio líquidos. Estou com fome, quero andar, ver a paisagem lá fora. Deixo a cama, uma borboleta ainda trêmula que abandona o casulo, agora seco, duro, vazio. Eu estava ali, fui aquilo, aquele ser rastejante, horrendo. Olhos os lençóis amarrotados, as enormes bulas de remédio desdobradas, o termômetro fora do estojo. Farelos no chão, roupas molhadas, penumbra viciosa. Abro as cortinas, a janela, deixo o ar novo entrar. Me sinto fraco, mas curado. A doença, penso, a caminho da sala, a morbidez entrou em mim como um espírito. Um súcubo. Me possuiu, me sacudiu, me desorientou. Virou meu corpo do avesso. Alterou o tempo, o sentimento do mundo. Vivi o expressionismo da carne em chamas. Foi uma experiência estética. No teatro do corpo, isso não deixou de ser uma experiência estética. Doença também é linguagem, penso, e cravo os dentes numa maçã.