O rapaz do blazer azul

O pombo pousa na calçada. Sai ciscando migalhas por entre as mesas, com esse movimento elétrico dos pombos. De pernas cruzadas, o rapaz do blazer azul olha o celular. Balança o pé suspenso como se fosse a cauda dos seus pensamentos. É um sujeito jovem e bonito. Tudo que veste é novo, reluzente. O blazer, a camisa branca, as calças jeans, os tênis marrons de marca americana. Até pela forma como digita no celular, com a espinha ereta, o dedo muito preciso, deve ser do tipo que dorme de pijama e lava o carro toda semana.

Estamos na calçada do café. Somos os únicos clientes. Não há ninguém aqui além de nós, e à nossa volta só vejo a mãe que joga futebol com o filho, lá no gramado diante do Tejo.

A garota magrinha e nervosa que nos serve se esqueceu de nós. Há pelo menos quinze minutos não sai lá de dentro, de onde vem o som abafado de uma bossa-nova gringa.

Olho para a avenida, margeada na calçada oposta por uma fileira de plátanos. O sol poente atravessa as folhas das árvores, e logo depois do gramado o Tejo é uma bandeja de ouro líquido, com a qual os deuses me servem o espetáculo do desmaio do dia nos braços frios da noite. Às vezes o vento do rio agita as folhas, e a fricção delas faz esse som de chuva seca que dá um prazer de mistério sussurrado.
Lá longe, um avião comercial risca as últimas brasas do céu, deixando um rastro de giz volátil.

Eu fico mole e atento diante dessa beleza que me fere e escapa.

A garota magrinha afinal serve um coquetel para o rapaz do blazer, um líquido rosado numa taça bojuda. Não sei o que é porque nunca bebo coquetéis. Depois ela traz a minha imperial. O rapaz do blazer não tenta avaliar como eu a bunda da garota dentro da calça folgada, está sorrindo de algo que escreve no aparelho.

O sol agoniza atrás das colinas de Lisboa, que vista assim de longe, através do Tejo, é quase a lembrança silenciosa de uma cidade.

A moça surge na esquina. Caminha em nossa direção. É uma belezura de pele morena, o vestido branco grudado ao corpo como um coldre à arma. Seu andar é elegante, os sapatos de salto alto seguindo uma linha bem definida. Mas nota-se um pouco de cansaço na lentidão das ancas. Senta-se em frente ao rapaz do blazer sem dizer nada, ajeita a bolsa no colo, suspira. Ele sorri para ela, diz alguma coisa breve. E continua olhando o celular. A moça olha para mim, para o rio, mexe no brinco de argola dourada, não sabe onde pousar uma ligeira inquietação. Eu desvio o olhar, não quero parecer um bisbilhoteiro solitário, embora neste momento não seja outra coisa.

Já não sobrou do sol senão o eco da luz de mais um dia. O volume das coisas lentamente é absorvido pelas sombras.

Dou um gole na imperial e vejo o rapaz largar o celular, passar a mão no braço da moça. Um carinho indeciso, cauteloso. Ela abaixa a cabeça, triste. Ele põe ternamente a mão em sua nuca. A moça faz um biquinho de magoada, depois ergue o rosto como quem emerge de um despeito, nariz e seios empinados. O rapaz dá o bote. Um beijo de reconciliação? A moça resiste a abrir de vez a boca. Quando abre, entrega-se com suavidade, pousando a mão de pianista no ombro do rapaz.

Dou mais um gole. O rapaz diz algo no ouvido da moça. Ela simula um tapa no rosto dele, sem tocá-lo. Dá um gole no drinque vermelho, bem maior do que eu poderia esperar de moça tão fina. Talvez precise se embriagar para o desatino da entrega. Ele não se entregará, não como ela gostaria. A moça limpa a boca no guardanapo que estava sob a taça bojuda. Quer o canastrão milenar entre as suas coxas, mesmo que após os gemidos de prazer não venha a doçura de uma dupla rendição – mas já estou fazendo ficção. Aliás, estou sempre fazendo ficção. O que não me torna diferente de ninguém.
Onde foi parar aquele pombo?

O rapaz do blazer azul vai lá dentro do café pagar a conta. Quando volta, os dois saem. Vão transar, penso, e depois sorrir, e depois discutir, e então tentar se equilibrar na velha corda sobre o abismo intransponível que há entre os amantes.

Atravessam a avenida em direção ao carro. Ele é um tantinho manco, o braço dela acompanha o movimento de sua cintura como a corda de uma boia. O rapaz seria todo certinho para compensar o desalinho do corpo?

Termino a imperial numa talagada curta. Deixo o dinheiro sobre a mesa, caminho pela avenida. Agora ela está iluminada pela luz dos postes. O sussurro das folhas é uma revoada de possibilidades obscuras. Uma lufada de vento me envolve e me lembra de que sou apenas uma chama, eu ponho as mãos nos bolsos, sorrio para a noite.

Nunca compreendi bem o que chamamos de amor. A ginástica sexual, o tango dos afetos. O ardor inicial esfriando nas cozinhas do hábito. Mas é bom imaginar que agora aqueles dois estão nus e saciados, espalhados na cama como dois náufragos do prazer.

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