Fronteiras

1.

Quando fui a Miranda do Douro, uma amiga me perguntou se eu queria ver o rio de perto. Entramos no carro dela e descemos o planalto. Lá em baixo, paramos diante de um trapiche. Caminhei por ali meio tonto com aquela beleza toda. O Douro surgia de uma curva entre paredões de pedra, depois seguia em linha reta até encontrar uma ponte. As águas negras, acetinadas, tinham a lentidão de um espírito antigo da terra. Um pássaro planou sobre os penhascos, e minha amiga me disse que era uma águia. Perto de nós, algumas árvores se debruçavam sobre o rio, como que atraídas pela fluidez. Me sentei no trapiche e vi pequenos peixes prateados que sumiram na água escura, feito faíscas.

“Deste lado do rio é Portugal, do outro já é Espanha”, me disse ela. Perguntei onde ficava exatamente a fronteira. “Passa bem pelo meio do rio.” Tentei fazer uma linha imaginária, dividir as águas. Mas o rio, obviamente, corria inteiro. Passava solenemente por cima dessa nossa ideia de ver a terra como um quebra-cabeça de nações mais ou menos hostis.

Um homem num caiaque veio vindo da represa, em lento zigue-zague. Ora estava na Espanha, ora em Portugal. Mas o sol não mudava de língua ou costume, e batia na sua moleira como fez com os soldados cartagineses e romanos que um dia se digladiaram na disputa por esses territórios.

O caiaque entrou no desfiladeiro. Na base dos paredões de pedra, ficou minúsculo e, lentamente, sumiu na curva.

2.

Fui a um bar encontrar o poeta. Cheguei antes dele, no exato momento em que um rapaz estava abrindo as portas do boteco. Como não conhecia o lugar e não havia placa na fachada, procurei a mensagem que tinha recebido com o endereço e perguntei:

– Aqui é o bar tal, rua das Fontainhas número tal, Alfama?

O rapaz arregalou os olhos:

– É aqui, mas não diga isso!

– O quê?

– Alfama. Aqui é Mouraria, não Alfama. Uma está ao lado da outra, mas são coisas completamente diferentes.

Eu sabia que Alfama fica de um lado do Castelo de São Jorge, Mouraria do outro. Já havia andado pelos dois bairros diversas vezes, mas, distraído como sempre, não questionei a informação que recebi na mensagem do poeta. Mesmo assim perguntei qual era a diferença, para saber por que o rapaz tinha se espantado tanto. Ele abriu os braços, como se fosse óbvio, e repetiu:

– São completamente diferentes!

Quando o poeta chegou, contei o que tinha acontecido. Ele, que é lisboeta, riu sem nenhuma surpresa. Me explicou que Alfama tinha sido o bairro dos mouros, quando eles dominavam Lisboa. Já a Mouraria havia surgido depois da reconquista cristã. Dom Afonso Henriques usara o lugar para confinar os muçulmanos derrotados.

– Ou seja, na Alfama o mouro sobe, na Mouraria o mouro desce, brinquei.

Ele suspirou e disse que essas coisas haviam acontecido há muito tempo. As diferenças (essa e outras) tinham ficado na cabeça das pessoas como algo que herdaram e não questionam mais de onde veio. Depois disse que, já no século dezenove, Alfama, Mouraria, “isso tudo era unido pela pobreza e pelo fado”.

O fado, pensei mais tarde a caminho de casa. O fado que no começo era cantado por marinheiros, que cresceu nas tabernas, nos bordéis, nos ambientes de orgia e violência dos bairros mais pobres de Lisboa. O fado que atravessou as fronteiras de classe (como o samba, como o tango, como o blues) e agora é cantado nos teatros da elite, entre suspiros e lágrimas de uma identidade nacional profunda. Mas bem vestido, sem o cheiro original de azedume de vinho ou perfume de puta. Limpo, sóbrio, sublimado. Do povo ficou só o lamento de um corpo apagado.

3.

Estou no Aldi do Barreiro. Logo vão fechar as portas, o supermercado está quase vazio. Passo as compras pelo caixa, vou colocá-las numa sacola quando começa a confusão. A cliente que está atrás de mim grita com a funcionária do caixa. Quer saber por que o segurança está perseguindo o último cliente que entrou. Olhamos, a funcionária e eu, para o corredor em que o segurança caminha, dissimuladamente, atrás de um homem africano.

– É só por causa da cor da pele? Se fosse um branco ele desconfiaria de alguma coisa?

A funcionária olha com firmeza para a cliente e diz que o segurança está apenas “a fazer o seu trabalho”. É branca, como eu, o segurança e a mulher que reclamou.

– Racismo! Estou farta disso.

O segurança, que parece ter ouvido a discussão, mudou de rumo. O cliente preto olhou rapidamente para nós, depois seguiu fazendo suas compras. Sabia que até mesmo quem o apoia pode representar perigo. E se refugiou entre maioneses e refrigerantes, fazendo o possível para se tornar invisível.

4.

No dia 19 de janeiro, a travesti brasileira Keyla Brasil invadiu a peça “Tudo sobre minha mãe”, que estava sendo representada no Teatro São Luiz, situado no coração de Lisboa. Keyla, só de calcinha e botas, subiu ao palco e reclamou do fato de uma personagem da peça, a transgênero Lola, estar sendo representada por um ator cisgênero. O coração de Lisboa, acostumado às transgressões da arte mas não aos gritos da realidade, deu um pulo. A produção desceu as cortinas, alguém na plateia pediu respeito aos atores. Keyla, no tom agressivo que precisa usar para enfrentar homens violentos na noite, fazia seu discurso:

– Por que não contratam pessoas trans para fazer as personagens? Sabem por que eu trabalho como prostituta? Sabem por que eu tô chupando pau como a Lola? Porque nós não temos espaço para estar aqui neste palco, neste lugar sagrado!

Os seios de Keyla vibravam ao ritmo das palavras, como antenas de um sismógrafo. Houve aplausos, gritos de apoio. Keyla se curvou em agradecimento e, ao erguer-se, jogou sua vasta cabeleira para trás.

Foi grande a repercussão desse episódio na mídia.

As opiniões do público se dividiram. De um lado, os que acharam violenta a invasão e defenderam a profissão de ator, na qual a liberdade de fazer qualquer papel é básica. Os mais moderados dentre esses diziam que Keyla devia ter sido mais educada; os mais radicais revelaram xenofobia, homofobia e preconceitos de classe, chamando-a de “favelada”, “paneleiro” e “ignorante”.

De outro lado, os que acreditam que não se pode fazer omelete sem quebrar os ovos, ou seja: na luta feroz pela igualdade, não há revolução fofa. Alguns lembraram que Keyla tinha sido muito educada perto do modo estúpido como é tratada nas ruas.

O que impressiona é que, para muita gente bem pensante, a reflexão sobre as questões de gênero da peça de Samuel Adamson ficava bonita e inteligente na moldura do palco. Diante da súbita aparição da realidade em que a peça se baseia – Keyla de calcinha, chibatando o ar burguês do teatro com sua cabeleira –, essa mesma gente torceu o nariz democrático. É como se pensassem: “Isso tem um limite. Não vá agora a vida querer imitar a arte”.

O ator que fazia o papel de Lola foi substituído por uma atriz transgênero. Declarou à imprensa que era favorável à igualdade de oportunidades, mas sentia-se “violentado e castrado”.

Kelly, frente às ameaças que recebeu depois do episódio, teve que sair de Lisboa.

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