Sem nome

De todos os tipos de edifícios, só um me interessa, a ruína. É a ruína que dá sentido à cidade. (…). Uma cidade se lê com a vida. A vida sabe ler (Paulo Leminski, no Ensaios e Anseios Crípticos, editora Unicamp).

Não tenho a mínima ideia onde Bolsonaro leu – se é que algum dia leu alguma coisa na vida – e aprendeu a construir ruínas. Creio que não leu absolutamente nada e sua obsessão é inata (é possível?). Desde o primeiro dia de seu governo seu fazer diário é construí-las. É a minha visão e a de muita gente.

É provável que está obsessão em construir ruinas seja genético. O comportamento dos filhos demonstram essa hereditariedade.

Leminski avança na reflexão sobre A nova ruína e escreve que O nome dessa reflexão (odeio a palavra “crônica”, com que alguns costumam designar meus “textos-ninja”) era para ser “instruções para a construção de uma ruína”.

Não comento as instruções – que não vieram – sobre a construção de uma ruína, mas registro que, ao contrário de Leminski, nunca tive ódio à palavra crônica. Tive, quando ela entrou na minha vida como a classificação de um texto, estranheza.

A palavra crônica entrou na minha vida na década de 1970 (século passado), durante o meu curso de medicina. Naquela época, vindo do interior e com parcas leituras, era um “analfabeto”. Não lia nada além do necessário para me tornar médico. Crônica para mim era somente o padrão de manifestação de algumas doenças. Crônicas ou agudas.

Mesmo que lesse alguma crônica, e provavelmente lia algumas, só conhecia a palavra para designar os doentes crônicos, como os asmáticos, reumáticos, diabéticos, hipertensos, tuberculosos…

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos / A vida inteira que poderia ter sido e não foi / Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

_ Diga trinta e três. / _ Trinta e três… trinta e três… trinta e três… / _ Respire.

_ O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. / _ Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax / _ Não.

A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Suores noturnos, tosses, hemoptises eram a indicação da existência de alguma doença crônica ou aguda. No RX aprendi a ver os infiltrados, as escavações e os pneumotóraces.

Não conhecia Pneumotórax de Manuel Bandeira e nenhum dos demais grandes poetas e escritores brasileiros, que dirá um tango argentino.

No mesmo livro Leminski relata que um dia, no apartamento de Caetano Veloso, foi apresentado a uma música recém composta: um índio descerá de uma estrela brilhante, colorida… mas que não tinha nome ainda e precisava de um.

Então eu [Leminki] falei: acho que o melhor nome para uma música são as suas primeiras palavras, para facilitar quem quiser cantar.

Conta Leminski que Caetano gostou da ideia e a música se chamou, claro, “Um índio”, e eu fiquei feliz de poder dar alguma coisa a alguém …

Dar nome aos textos, poemas, crônicas, contos, artigos, reflexões, ensaios, gatos, cachorros e mesmo para filhos e filhas é, para muita gente, algo difícil.

Antigamente era comum as pessoas procurarem o nome para o rebento em almanaques. Outra tendência era nomear de acordo com o santo do dia. Depois houve um período em que as telenovelas e os jogadores de futebol foram fontes da origem de muitos nomes. Hoje, parece-me que, em uma camada da sociedade, a consulta para dar nomes aos recém-nascidos é a Bíblia.

Neste antigamente, só com rádio e almanaques, e com a família analfabeta ou semialfabetizada, o nome era uma busca de uma agulha num palheiro. Nunca perguntei, mas creio que foi isso que ocorreu lá em casa – ou foi um conclave da família? – com o primeiro filho, no caso, eu.

Apesar de chegar nove meses depois do início da gravidez devo ter pego os recém-casados – que trabalhavam demais e não tinham tempo para pensar no futuro logo ali, como por exemplo o nome a dar, no caso, a mim – de surpresa.

Um avô Thomaz, outro José, tios Antônio, Ernesto, Valdomiro, tudo muito simples e comum. Não dava, tinha que fugir dessa simplicidade e, no caso, primeiro filho, primeira oportunidade. Imagino, eu era essa oportunidade.

Não sei o tempo de duração dos conclaves e acredito que houve consenso e dias depois fui registrado e batizado (ou na ordem inversa) com o nome de Florisvaldo. Imagino: tanto trabalho para dar nome ao filho, que pouco valeu, pois antes dos 23 anos passou a ser Rosinha e depois, finalmente médico, Dr. Rosinha.

A palavra bulling, antigamente não era usada, porém a pratica existia na década de 1970 e eu, apesar de não saber de sua existência, fui vítima dele. Hoje, ao contrário da época, não reclamo, pois com o apelido acabei construindo uma vida pública e aprendi que crônica não se aplica só a doentes. Inclusive escrevo algumas.

É melhor ser Florisvaldo ou Rosinha que ser um Messias construtor de ruínas.

Com ruínas – construídas por Bolsonaro – por todos os lados e sem o Leminski por perto para me ajudar a dar o nome a esta crônica concluo-a sem nome.

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