Nada escrevo sem “inspiração”. Ou será estado de espírito?
Para escrever preciso de silêncio dentro de casa, já dentro de mim preciso de alguma agitação.
No silêncio e em silêncio – ouvindo minhas agitações – sento-me frente ao computador para começar a passá-las no papel. No papel?
Computador ligado, alongo os braços, exercito os dedos e assim que me “debruço” sobre o teclado começo a ouvir vozes.
De onde vem?
Olho ao redor e não vejo ninguém. Estou só na biblioteca.
O texto que havia na minha cabeça, diria a inspiração, começou a ficar submerso às vozes e num passe de mágica desapareceu.
Interrompida a “inspiração”, desaparecida a ideia original da crônica, veio o vazio e a pergunta: o que fazer?
Certo que muita gente já perguntou “o que fazer”, inclusive Lênin e antes dele Nicolai Tchernychevskii, e para responder, cada qual escreveu um livro.
Minha necessidade é só uma crônica.
Sentado, na frente do computador, olho para os livros na prateleira em frente a procura do dono da voz.
Será que é um personagem de algum romance ou um poeta cuja alma e/ou espírito inspirados procura um lápis ou uma caneta e papel para escrever um verso, um soneto ou um poema?
“Assustado”, continuo me interrogando: será a voz escrava saindo de dentro de um livro de história ou o capataz torturando-a? É a voz de um “índio” gritando socorro, um socorro tão longe, longo e profundo que não consigo ouvir e compreender?
Serão as vozes dos assassinados da favela do Jacarezinho?
Numa rara alegria imagino que pode ser a voz que vai me ditar a crônica ou um artigo ou um poema. A alegria durou o tempo do segundo pensamento.
Procuro, com os olhos, entre as lombadas dos livros de onde vem a voz. São tantas as lombadas e a voz – tenho a impressão – muda de lugar, foge dos meus olhos, engana meus ouvidos e logo – por não entender o que diz – penso ser um francês: Sartre?
Que alegria!
Sartre tentando se comunicar comigo. É só imaginação. Delírio?
Não sou kardecista.
Presto atenção. Não, não é francês. A voz vem de duas prateleiras abaixo.
É japonês?
Será o Musashi?
Vai me ensinar o que é ser um samurai?
Será que é Gabriel García Márquez, que dentro dos seus Cem Anos de Solidão busca algum conforto?
Procuro entre alguns livros – comprados em sebos – usados qual deles pode estar falando comigo.
Pode ser uma alma “penada” pelo uso indevido do livro. Imagino que pode ser a voz do antigo dono ou de algum personagem que se sentiu traído, abandonado e reclama do ambiente em que se encontra.
Sei que o ambiente aqui de casa não é o adequado. Sei que não dou tudo de mim – enquanto eles estão ali ao meu inteiro dispor – aos livros e aos seus personagens.
Prometo-me a dar mais atenção aos livros, porém no momento dou mais atenção à voz.
Opa! São duas vozes. Agora surgiu uma voz feminina. Paro de digitar e no silêncio das teclas observo ser um diálogo. Diálogo em voz baixa que não compreendo. Não entendo.
Nas prateleiras, os livros – organização pessoal, sem conhecimento de como se organiza uma biblioteca – estão perfilados por temas e para separá-los coloco algumas bonecas/moças ou moços/bonecos de cerâmica. Será que na solidão do dia-noite ganharam voz e estão em algum – por não notarem a minha presença – diálogo amoroso?
Fico com pena. Se for isso, será namoro infrutífero, sem encontro, a menos que eu comovido pelo clamor deste diálogo – caso entenda-o – coloque-os lado a lado.
Imagino-os lado a lado na solidão das noites o que podem fazer.
Depende da idade e do período em que vivem. Alguns terão relações de amor à moda antiga: recatadamente sentados e mantendo distância vigiada. Outros casais serão mais ousados: abraços, beijos e quiçá, longe dos meus olhos alguma relação sexual.
Enquanto escrevia imaginei o romance da moça/boneca da saia rendada e rodada com o músico do violoncelo. Ela mais moderna e ele mais antiquado: que relação seria?
As vozes persistem e eu persisto em descobrir quem fala. Deve ser a voz de alguma dedicatória protestando por ter ido parar num sebo e numa situação constrangedora de liquidação porque o sebo vai fechar.
Abandonado da casa materna/paterna foi parar num respeitável sebo, que em dificuldades financeiras colocou-o numa promoção.
Comprei-o e até agora ela, [a dedicatória] não se conforma por ter passado por um sebo e por eu não dar a devida atenção.
Na procura de onde vinham as vozes: encontrei uma dedicatória – num livro usado – que me pediu para não fazer qualquer referência a ela.
Disse-me que foi parar num sebo contra sua vontade. Dito isso, com a voz triste acrescentou: “são dolorosas recordações”.
Pela tristeza na voz imaginei uma lágrima escorrendo pela página do livro.