Passaram mesmo por cima

O último carro passa, o sinal abre, e Rute acelera devagar. Entramos na pista única da Ponte Dona Amélia.

Por entre as vigas vermelhas da estrutura metálica, olho para o rio. Escorre lento e pesado em meio às velhas terras do Ribatejo. Quanta história percorreu este veio vital, este rastilho de pólvora…

Lembro-me de Alves Redol, do que conta sobre os pescadores pobres de Vieira de Leiria que, há mais de cem anos, durante o inverno, fugindo do mar revolto vinham para cá pescar. À noite, dormiam nas pequenas bateiras com a família. De dia misturavam o suor às águas calmas, grávidas de peixes. Pela ação de suas mãos cortadas pelas linhas, enguias, sáveis e fataças saltavam para os pratos dos portugueses.

Pouco a pouco aqueles “ciganos do rio” foram ficando, esquecendo o mar, conta Redol. Construíram estas Aldeias Avieiras, que turistas como nós procuram em vão agora.

Obedecendo à voz monocórdia do aplicativo, Rute segue pela N118.

Sei que não encontrarei os avieiros. Já não existe mais aquela vida dura e larga do povo do rio, suas falas gritadas, a trama explícita de alegria, comércio, lamento, religiosidade, sexo. Eram tão pobres quanto vivos, de um jeito que não somos, irmanados, entranhados na natureza como a lampreia e o sável, que agora também estão em vias de extinção. A poluição e a pesca predaram o equilíbrio, apagaram, das duas pontas da linha tensa, pescador e peixe.

Chegamos a Escaroupim. Rute estaciona o carro no pequeno descampado diante do Tejo. Algumas pessoas passeiam pela margem, em frente aos trapiches. Dois barcos turísticos aguardam passageiros. São lanchas de fibra de vidro, cobertas por toldos listrados de azul e branco. Numa delas, um grupo sorri, confortavelmente sentado nos bancos estofados. Olhamos para trás.

A vila é um conjunto de casinhas de cimento azulejadas, com pequenas varandas que dão para jardins floridos. Das casas dos avieiros restaram muito poucas. Basicamente um conjunto de seis palafitas de madeira, geminadas, azuis e verdes. Estão na orla, a um metro do solo, suspensas sobre pilares para gravitarem acima das marés do Tejo, que hoje não as alcançam. Escadinhas paralelas, pintadas de um vermelho escuro, sobem da areia pedregosa para cada uma das portas frontais, que são baixas e ocupam metade das fachadas estreitas. Vê-se, pelo tamanho de tudo, que a gente que vivia aqui era pequenina.

No momento em que admiramos as casas, um casal de turistas italianos, celulares em punho, para diante delas e não hesita: pela sua reação, os dois acharam o cenário perfeito. Como gigante, a mulher sobe uma das escadinhas, senta-se diante da porta. Faz poses: de óculos escuros; sem eles; de lado abraçando os joelhos, em posição de feto; em pé, com a cabeça grande acima da moldura da porta etc. O homem tira fotos da companheira, mudando de ângulo. Depois, trocam de lugar.

Um tanto decepcionados, buscando o único ânimo possível, Rute e eu também fazemos nossas fotos ali. Sem resistir, fomos ali também enormes fetos no útero seco da história.

Vamos aos trapiches. Rute avança por um deles. Paro no embarcadouro e pergunto a um velho barqueiro quanto custa o passeio. O lenho secular de seu corpo, castigado por sóis e ventos, não condiz com a camiseta nova que ostenta o logotipo colorido de um projeto turístico. Rapidamente compreendo que tenho a chance de conversar com quem talvez saiba o que foi a vida dos avieiros.

Exibo só um ligeiro interesse:

– O senhor é pescador?

O velho me examina. Em seu rosto uma rede firme de sulcos. Demora para responder. Então olha de lado, para o rio.

– Criei duas filhas dend’meu barco. Elas dormiam naquela divisãozinho ali paradeira, e eu dormia mais a minha mulher na proa. Custa-me agora acreditar como é que a gente fazia isto… Morreu-me a mulher e as filhas, afogadas ali por cima de Vila Franca. E tava um bocadito de vento. E pois eu vinha n’áuga, começou a chover. Pus o toldi por cima. Então pois veio aquela barcaça, com uma luz pequena. Eu como tinha as redes presas no barco já não tive tempo. Passaram mesmo por cima. Foi o barco e foi tudo pa’o fundo.

Alguém o chama. O velho se despede, vai conduzir um passeio pelo rio. Vejo-o partir com o casal de italianos e alguns loiros nórdicos.

Rute vem em minha direção, convida a irmos embora. Digo que sim vendo o barco fazer a curva do rio, o tal logotipo tremulando numa bandeirinha festiva.

No carro, a caminho de Lisboa, me lembro do velho. Águas turvas sobem aos meus olhos. Vejo a paisagem, como quem passa sempre pelo ponto em que tudo foi para o fundo.


Para ir além

Sensibilidade é um experimento

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