Apontamentos – VII

Desgraça

_ Sai prá lá, desgraça.

Enquanto proferia a frase as mãos empurravam um homem negro que estava de pé na calçada.
Descia a rua Rua Monsenhor Celso, rumo a Praça Carlos Gomes. Caminhava devagar e desatento – irresponsabilidade com a própria vida nestes tempos de violência, aquela normal, de todos os dias, e agora soma-se à política.

De repente vejo dois Guardas Municipais, calmamente pedalando na contramão suas bicicletas rumo a Marechal Deodoro. Aceleram as pedaladas e tomam a direção da calçada em que caminho e se aproximam de onde estou. Só então noto que à minha frente há um homem alto, jovem e parado, com suas precárias roupas sujas.

Os ciclistas policiais chegam um de cada lado do homem e um deles, sem descer da bicicleta, empurra-o e diz “Sai pra lá, desgraça”. O outro observa o redor e diz:

– Cuidado, o Lula.

Acredito que se referia a mim, que tinha um adesivo de campanha do Lula colado na blusa.

O comentário, cuidado o Lula! é simbólico. Interpretei que, com o Lula na Presidência, a violência policial por si só diminuirá. Caso contrário, crescerá e será a desgraça para muito mais gente.


Medo

Escrevo esta crônica antes do segundo turno da eleição: são dias de incertezas, preocupações, tristezas e medo. Medo de usar roupa de cor vermelha, de usar adesivo no carro e medo de se manifestar politicamente.

Medo pela ascensão do fascismo, já explicitado todos os dias nas ruas e mesmo em conversas privadas.

Estava na rua panfletando quando um cidadão me disse que na cabeça de cada eleitor/a de Bolsonaro tem micropontos de fascismo, mesmo que não tenha consciência disso, instalados no cérebro.

Concordei.

Ainda que não consiga explicar, quem vota em Bolsonaro tem concordância com alguma ou várias das ideias e práticas dele.

Como será o dia 30 à noite?

Exclamaremos: Ufa!, o fascista foi derrotado! Ou tudo vai piorar: a reeleição será a licença para matar.

No medo e no nervosismo da espera, faltando ainda 14 dias para a eleição, ouvi da boca de uma professora aposentada: parece que o Natal vai chegar antes da eleição.


Diário

Crônicas são quase diários. Cada cronista percebe e escreve o mundo, a vida e os fatos como vê. De tudo que fez, viu e anotou, o que vai para a escrita?

As dúvidas devem estar menos presentes em quem escreve um diário. Imagino que há mais liberdade na escrita. Escreve para si e imagina, com o diário trancado a sete chaves, que ninguém vai ler.

E, quais são as dúvidas de quem escreve uma autobiografia? O que contar sobre as estripulias do passado, ou são irrelevantes? O que escrever que não agrida a sensibilidade ou mesmo comprometa a vida alheia?

Autocensura, imagino, se torna amiga de quem escreve a autobiografia.


Brincando de médica

– O próximo.

Assim sou chamado pela menina de dez anos. Ela é a médica, eu o paciente.

Entro no consultório e de maneira seca, sem sorriso, recebo a ordem e a pergunta:

– Senta aí. O que o senhor sente?
– Tenho dores no peito e muita tosse. – Respondo.
– Quando começou?
– Faz três dias, tenho também um pouco de febre.
– Tá bom, tá bom!
– Desabotoa a camisa.
Após ouvir meu peito com um estetoscópio – este verdadeiro – diz:
– O senhor tem gripe. Toma este remédio que tudo vai ficar bem.
Recolhe uma folha de papel e escreve o nome de um analgésico e diz:
– Pode ir
– Mas,… – Sou interrompido.
– Pode ir, o que o senhor quer? Aqui é o SUS.
E já gritou:
– Próximo.
Se, brincando de médica, assim ela procede é porque assim ela é atendida.

Sobre o/a autor/a

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