Palavra nova, velha realidade

Voltimeia surge a necessidade de se inventar uma palavra para dar conta de sintetizar um conjunto de hábitos, posturas e atitudes que está presente de forma intensa na sociedade, mas ainda não pode ser evocado por seu termo único e exato. Pessoas gordas, por exemplo, foram ironizadas e maltratadas durante muito tempo, sem que os responsáveis pudessem ser chamados pela alcunha devida: gordofóbicos.

O mesmo se passou com as atitudes discriminatórias (e hoje criminosas) contra homossexuais. Homofóbicos sempre estiveram por aí, mas a ausência de uma palavra que os nomeasse significava que nem mesmo essa arma os agredidos tinham a sua disposição para se defender e revidar. “Idiota”, “imbecil”, “acéfalo” até descrevem esse tipo de gente, mas de forma muito genérica. “Homofobia” surge para trazer a força e a precisão necessárias à classificação do comportamento. O ato de cunhar uma palavra (e escrevê-la e pronunciá-la) traz o benefício de aproximar do nosso campo de visão aquilo que por outros meios não seria percebido. Uma das funções da palavra é tornar presente o que está ausente. Não ausente do mundo, mas de nossos pensamentos. Muitas realidades podem até ser concretas e palpáveis, porém invisíveis. As palavras são o lençol que estendemos sobre o invisível, revelando, assim, os seus contornos; a farinha que espalhamos pelo chão para podermos ver as pegadas ali deixadas pelo mundo. É nesse sentido que a filósofa Djamila Ribeiro afirma não ser possível combater o que não tem nome.

Um outro conjunto de hábitos bastante disseminados em parte da sociedade brasileira, mas que até pouco tempo atrás carecia da expressão justa que os sumarizasse, é aquele que engloba:

• Dizer as maiores barbaridades e crueldades e se defender com o escudo da opinião ou da liberdade de expressão
• Culpabilizar as vítimas alegando que seu comportamento foi o motivador do crime
• Culpabilizar os fracassos pessoais (dos outros) alegando que foi falta de vontade e de esforço
• Ofender pessoas e grupos (nordestinos, por exemplo) e se esquivar com a desculpa do caráter brincalhão e jocoso dos brasileiros
• O autoritarismo hipócrita do “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”
• O saudosismo de tempos mais autoritários
• Desprezo pelos Direitos Humanos (“Direitos Humanos para humanos direitos”, eles dizem)
• Desprezo pelas artes em geral
• Orgulho da própria ignorância
• Antirracionalismo
• Anti-intelectualismo
• Adesão imediata e irrefletida a teorias da conspiração
• Incitação à violência contra opositores
• Tentativa de desacreditar e criminalizar movimentos sociais
• Mentiras como um modo fundamental de enfraquecer adversários
• Dificuldade de, por meio da linguagem verbal, articular pensamentos e ideias de forma coesa, coerente, linear e inteligível
• Interiorização da repressão sexual, da qual derivam comportamentos repletos de moralismos e puritanismos relativos à liberdade dos corpos (preocupação excessiva, mórbida e recalcada com o ânus dos outros)
• Desprezo pela vida e pelos corpos alheios a partir do desejo sádico da punição (isso é falta de pancada, de chinelo, de cinta, de bala)
• Cegueira ideológica e tolerância a tudo de errado, vergonhoso e criminoso que seu grupo pratica (fake news, por exemplo), enquanto reivindica a lei para os erros, vergonhas e crimes alheios
• Negação das descobertas científicas, seja em nome de superstições religiosas, seja apenas por serem inconvenientes e percalço a projetos pessoais.
• Tentativa de desacreditar a democracia quando esta se transforma em obstáculo a suas ambições e desejos autocentrados (contestação das urnas eletrônicas, “nordestinos analfabetos”)
• LGBT-fobia
• Misoginia
• Racismo
• Xenofobia (exceto contra europeus)

Claro que dispomos de palavras para descrever separadamente alguns desses comportamentos, que certamente são ainda mais numerosos: intolerância, racismo, hipocrisia, negacionismo… O que faltava era uma que conseguisse sozinha envolver todo esse horror, como um átomo de urânio concentrando a descomunal energia destrutiva dentro dele. A palavra que faltava é bolsonarismo.

Os adeptos do bolsonarismo são os bolsonaristas. Um bolsonarista é um clone moral de seu ídolo: é alguém que abdicou de sua humanidade. Um bolsonarista odeia direitos humanos, odeia ciências humanas, odeia o Humanismo (embora não saiba do que se trata). Ele odeia o corpo humano, que para ele é fonte de subversão e pecado. O corpo humano para ele é sujo. Para um bolsonarista, um corpo indomesticável e livre precisa ser silenciado, precisa desaparecer. Um bolsonarista é alguém ansioso por poder enterrar tudo o que é humano. Aplicando à coletividade sua pulsão de morte, não vê a hora de a humanidade se igualar a ele em sua condição de cadáver ambulante. Um bolsonarista é um necrófilo, habitante de uma necrópole, rezador da missa da necropolítica. Um bolsonarista é alguém que morreu. E, morto, precisa angustiadamente transformar os outros corpos em sua imagem e semelhança.

Mas a vida sempre se impõe. A vida, palavra antiga, derrotará o bolsonarismo. Levará tempo, isso é certo, ele permanecerá entre nós mesmo depois que o homem que lhe emprestou o nome não ocupe mais o principal cargo da República.

Levará tempo, mas em algum momento é preciso começar. Comecemos neste domingo, dia 30 de outubro.
A beleza derrotará o horror.

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