Falsos cognatos

Ao professor Sírio Possenti

Cognatas são palavras pertencentes à mesma família. Família, family, famille, familie, familia e famiglia, só para familiarizar ao leitor o conceito, são todas da mesma família. E apesar de em grandes levas migratórias terem pelo mundo se espalhado (às vezes o melhor que pode acontecer aos parentes é se apartarem), carregam todas o mesmo DNA.

Já os falsos cognatos são palavras estrangeiras que se parecem muito com alguma palavra em português, seja na pronúncia, seja na escrita, mas cujos significados serão sempre diferentes. Em inglês, por exemplo, lunch significa almoço. Imagine um turista americano de camisa e bermuda florida passeando pela rua, quando avista uma placa escrito “lanche”. Talvez se confunda e pense que, afinal de contas, a língua brasileira não é tão difícil assim como se pinta. Ainda mais quando entrar e tiver a confirmação de que a lanchonete realmente serve almoço tipicamente americano, ou seja, junk food.

No entanto as coisas tenderiam a se complicar bastante, e a ilusão de sentir-se na própria casa desapareceria se na porta do estabelecimento houvesse um adesivo escrito “Puxe”, pois o que aconteceria é que muito provavelmente o nosso amigo turista tentaria, com a força das convicções, empurrá-la, ficando parado na entrada com cara de panaca e proporcionando aos circundantes momentos de graça, até que alguém finalmente se apiedasse de sua palermice linguística e abrisse a porta traiçoeira, puxando-a.

Há palavras assim em outras línguas também. Em espanhol, sótano quer dizer porão. Ou seja, como numa ilusão de Escher, aquilo que parece ser a parte mais alta da casa, em português, é na verdade a parte mais baixa da casa, na língua dos hermanos. Assim, quando um comparsa hispanohablante nos disser “Esconde el cuerpo en el sótano”, já sabemos qual atitude tomar para que, quando a polícia chegar, o céu, que fica em cima, não se converta subitamente em seu oposto. A não ser, claro, que sensatamente já tenhamos feito um acordo com a polícia. Aí, diante da ordem para esconder o corpo esquartejado, daremos uma de João-sem-braço, e caguetaremos (sem que ninguém desconfie, a culpa é das línguas) o nosso amigo, justificando mais uma vez o fato de, no idioma castelhano, serem os falsos cognatos chamados de falsos amigos.

A palavra “cognato” significa nascer junto, no sentido de ter os mesmos genes, a mesma raiz, a mesma base de significado. Quer dizer, em sua superfície, um falso cognato aparentará ser algo que não estará de acordo com o contido em sua mais profunda essência. É como o chupim, que convenientemente bota seus ovos em ninho alheio para a fêmea do tico-tico chocá-los, e com o perverso detalhe de eles serem quase idênticos aos da vítima da fraude. O ovo do chupim é o falso cognato do reino animal. E o tico-tico só se dará conta do engodo quando o ovo da serpente já tiver sido chocado…

Farsas dessa natureza existem às centenas, em relação a qualquer língua que se possa conceber. E poderíamos ficar horas aqui nos divertindo com seus sentidos pitorescos (zurdo em espanhol é canhoto), bipolares (terrific em inglês é formidável), surpreendentes (fede em italiano é fé). Nada superaria, contudo, os mais estranhos, exóticos, estrangeiros exemplos que já tive a oportunidade de conhecer: três palavras que, em português brasileiro, aparentam ser uma coisa, mas na verdade significam o seu contrário, num outro idioma bizarro igualmente chamado português brasileiro. É como se o reino das palavras fosse subitamente invadido pelo enredo de A Usurpadora, novela mexicana na qual a irmã bondosa, sem ninguém saber que ela tinha uma gêmea idêntica, assume o lugar da irmã malvada e começa a distribuir ternuras. Só que ao contrário: aqui é a gêmea perversa que toma o lugar da outra e desanda a cometer barbaridades. Quando ouço essas três palavras em determinadas ocasiões, tenho a nítida sensação de estar ouvindo uma língua forasteira na qual sótão é porão, puxe é empurre, guerra é paz e liberdade é escravidão.

São elas a palavra “cristão”, quando saída da boca de sujeitos que se declaram cristãos, mas defendem a tortura, a pena de morte, se opõem à justa distribuição do pão, são vendilhões do templo e atiram a primeira pedra (às vezes a fé realmente fede); a palavra “bem”, quando usada para designar cidadãos que roubam, sonegam, subornam, corrompem, agridem, são indiferentes ao sofrimento alheio e ameaçam covardemente quem não pensa como eles (como aconteceu recentemente com o escritor Julián Fuks, que por causa de uma crônica deliberadamente mal interpretada foi ameaçado de morte por bolsonaristas autodeclarados cidadãos de bem); e a palavra “patriota”, saída da boca de pessoas que dizem amar muito o país, botam bandeirinhas verde e amarelas nas janelas de seus ninhos e carros, mas adoram símbolos americanos, não se importam com o desmatamento de nossa floresta, com a fome de seus conterrâneos e são a favor da venda de empresas brasileiras para o capital estrangeiro.

São esses, sem dúvida (agora que a casca foi rompida e discernimos a Paulina da Paola e os tico-ticos dos chupins) os falsos cognatos mais radicais que, em português brasileiro, não significam a mesma coisa em português brasileiro:

Patriota bem cristão.

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