A favor da subtração ou contra a adição

Eu não deveria ter ficado impressionado nem tampouco soltado cabeludo palavrão quando vi na internet uma receita de quentão gelado. Afinal de contas, vivo num lugar chamado Brasil… e aqui não há mais pau-brasil. Mas juro que deu vontade de investigar os labirintos da poderosa maquinaria mental que se instalou na pessoa e a obrigou a agir desse jeito, como alguém que a poucos passos de completar a travessia da rua, pezinho já quase na calçada, esquecesse subitamente o motivo de a estar atravessando e voltasse correndo para o outro lado, morrendo atropelado.

Meu aturdimento foi tão grande que cheguei a procurar no Google, na esperança de aquilo ser apenas um caso isolado e não algum sintoma de delírio coletivo, a receita do que considerei ser a oposição lógica ao quentão gelado, ou seja, geladinho quente.

Muitos vão dizer não, isso não é possível, certamente é caso isolado, há limite para tudo nesta vida, há certas fronteiras que não podem ser transpostas, há certos picos de ausência de lucidez que mesmo um brasileiro não poderia nunca escalar, que bom que você procurou e não encontrou nada.  

Eu mesmo cheguei a duvidar, ingênuo, e só digitei as antípodas palavras por desencargo, por ser esse o tipo de coisa que um escritor faz: verificar se uma ideia súbita, quem sabe aproveitável e que considera nova já não está lá na internet desde 1696. Pois acreditem, irmãos duvidantes. Estava lá. Clara e obscura. Inóspita e oferecida. Sintética e tagarela. E não era poesia barroca. Era, sim, uma receita de geladinho de chocolate quente (Se és neve, como queimas com porfia?), figurando debochada ao lado de uma receita de macarronada sem macarrão (feita com abobrinha, literal e figurada), gargalhando como uma campainha que passou por uma criança, apertou estridente o seu nariz e saiu correndo.

Faz-se o chocolate quente. No fogo. Até ferver. Até ferver muito. Deixa-se amornar, para não derreter os saquinhos. Coloca-se o líquido resfriado nos saquinhos. Leva-se ao congelador. Espera-se duas horas. Toma-se enfim o geladinho de chocolate quente. Congelado.

(Como quis, que aqui fosse a neve ardente/ Permitiu, parecesse a chama fria.)

Eu sei. Eu sei. Eu não deveria ter ficado impressionado, nem tampouco soltado palavrão ainda mais cabeludo, muito menos desperdiçado neurônios e quase escrito textão quando vi na internet uma receita de geladinho de chocolate quente. Afinal de contas, nestes tempos de café sem cafeína, leite sem lactose, hambúrguer sem carne, coxinha sem frango, vinagrete sem vinagre, salgadinho sem sal, omelete sem ovo, McPicanha sem picanha, Whopper Costela sem costela, bacalhau vegano, Bis unitário, tecido não tecido, liberal conservador, imigrante xenófobo, crescimento negativo, transporte público privado, ativistas sentados, nazistas latinos, armamentistas pró-vida, desenho animado triste, Sandy e Angra, Lady Gaga e Metallica, Lula e Alckmin, museus de grandes novidades, live não ao vivo, videochamada só com áudio, Brasil sem carnaval, hospital sem hospitalidade, cristão sem compaixão, cidadão de bem sem bondade, mitos sem mítica, doutor sem doutorado, capitalista sem capital, Queen sem Freddie Mercury, Pink Floyd sem Roger Waters, Domingão sem Faustão, A Usurpadora sem SBT, SBT sem A Usurpadora, indígenas sem floresta, música sertaneja sem sertanejos, terráqueos sem terra, morador sem morada, casa sem gente, manchete sem notícia, notícia sem fatos, democracia sem povo, condenação sem provas, provas sem condenação, Igreja dos Pretos sem pretos, sociedades secretas sem segredos, orçamento secreto idem, palavras masculinas sem cromossomos, palavras femininas idem, sucesso de bilheteria sem espectadores (alô, Edir Macedo), contas públicas sem publicidade (alô, cartão corporativo), Forças Armadas sem força nas armas (alô, Viagra), românticos sem tuberculose, amor sem beijinho, Buchecha sem Claudinho, textos sem desfecho.

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