Meu desejo da encruzilhada

– … e assim, eu te invoco!

Kléber terminou de falar, ajoelhado numa toalha aveludada vermelha, meio brilhante. Na sua frente, desenhado com sangue de galinha d’angola, uma mandala invertida com velas pretas nas pontas e velas amarelas nos pontos do pentagrama. Tinha oferendas de comida, de todos os tipos, porque ele realmente não sabia o que usar. A parte mais importante era clara: estava numa encruzilhada.

Um cheiro de enxofre apareceu no ar, enquanto o vento se agitava como no momento que antecede a tempestade. Kléber foi obrigado a fechar os olhos por causa do pó das ruas, protegendo o rosto com o braço esquerdo – ele fez todo o ritual com a canhota, caso os mais antigos tivessem razão sobre isso também. Quando o vento cessou e ele voltou a abrir os olhos. Para a absoluta alegria e espanto, lá estava “ele”.

– Olá Kléber.

– Você veio…

– Você chamou. Eu vim.

– Nossa, eu… eu…

– Será que dá pra você não ficar ajoelhado? As pessoas fazem muito isso pro meu pai, dá um nervoso! Tipo quando chamam a gente de “senhor”, sabe?

– Opa! – Kléber se levantou, tirando o pó de cima da roupa. Ficou surpreso de ver que o convocado era um pouco mais baixo que ele.

– Então… eu sei porque você me chamou. Quer dizer: eu sei pra quê você me chamou.

– Pra vender minha alma!

– Ah, Kléber!

– O que foi?

– Não precisava dizer! Tava um clima sinistro gostoso, de mistério. Quando a gente fala tudo o que tá acontecendo parece que a nossa vida vira um capítulo de novela ruim.

– Desculpe.

– Orra… Vamos tentar de novo, o clima?

– Claro, claro.

– Então – ele dá uma limpada na garganta, faz-se um segundo de silêncio – Kléber! Eu sei pra que você me chamou.

– Sim, senhor!

– Você sabe o preço?

– A minha alma!

– NÃO FALA! Poxa, Kléber…

– Desculpa, desculpa.

– Saí de casa pra isso…

– Não, não, desculpa! Desculpa mesmo. Eu sou muito distraído.

– Vou falar a mesma coisa, e você não diz o que é! Até porque tá aqui no documento, ó – ele mostra o contrato, todo escrito em letras serifadas contra uma espécie de papiro.

– Uau, que bonito.

– Quando eu te perguntar você não precisa me explicar nada. Mensplaning pra cima de mim?

– Perdão, foi sem querer. Mas aproveitando que a gente parou…

– Fala, vamo.

– Como eu te chamo? Você tem muitos nomes, eu fiquei na dúvida. Devo usar algum pronome de tratamento…

– Nunca use o meu nome.

– Claro, claro… por quê?

– A gente acabou de se conhecer, por isso. Não te dei essa intimidade. Depois do contrato, você mora lá em casa uns milênios, aí rola.

– Tá.

– Na dúvida, me chama de “meu anjo”.

– Sério?

– Claro que é sério. Sou o primeiro, não enche!

– Sim, sim, meu anjo!

– Voltamos pro clima… Kléber! Você sabe o preço?

– Sim, meu anjo!

– Então assina aqui.

– …

– Então assina aqui! Assina… ô Kléber, qual é? O que aconteceu?

– … eu me senti muito estranho te chamando de “meu anjo”, deu um nó aqui. Sabe, sei lá, meio íntimo demais. Não posso te chamar de senhor?

– Senhor é meu pai. Literalmente.

– Então deixa eu te chamar de outra coisa.

– Chama de rei. Eu gosto de rei.

– Gosta? Ah, ótimo. Acho que nunca vi ninguém te chamando de rei.

– Claro que eu gosto, é por isso que eu uso essa coroa.

– Que coroa?

– Essa!

– … isso não são chifres?

– Nunca foram! Por que eu iria ter chifres? Por acaso na minha queda o calor da reentrada ia causar esse efeito? Se fosse assim o Neil Armstrong também teria.

– Eu sempre pensei que fossem chifres. E não só eu.

– Eu sei, é culpa daquele Gabriel. Ele posava pra pintores da Renascença e espalhou pra todos essa fofoca.

– De qualquer maneira, eu entendi.

– Ótimo. Bóra lá… Kléber!

– Oh, meu rei!

– Você veio nessa encruzilhada pra… do que você tá rindo?

– É que antes a gente falou de novela. Quando eu disse “oh, meu rei” eu me senti muito aqueles atores que fazem sotaque de merda quando interpretam baianos.

– Eu vou embora.

– Não! Não, não vai, é importante!

– Ok… Kléber!

– Meu rei!

– Você invocou e eu vim. Aqui está o contrato. Ele tem três espaços para serem preenchidos: seu nome completo, o seu desejo, a sua assinatura. Qual o seu nome completo?

– Kléber Augusto Saroiti.

O contrato flutuou no ar e, como se brotasse sangue de dentro, preencheu uma das três partes vazias com o nome completo de Kléber.

– Está preenchido. Agora… qual é o seu desejo?

– Eu quero ser um gênio do blues.

– Repete.

– Eu quero ser um gênio do blues!

– Mas eu nunca vi você encostando numa guitarra, Kléber.

– Mas é o que eu quero.

– Desde quando?

– … desde semana retrasada, quando eu ouvi a história do Robert Johnson.

– Kléber… me diz o nome de três grandes nomes do blues.

– Tem que fazer testes pra…?

– Não fala pra que serve o contrato que eu vou embora sem te dar nada!

– Tá bom, é que eu não sabia que tinha que fazer teste. Bom… Robert Johnson…

– Esse não vale, né?

– Péra, não muda a regra, você falou que podiam ser três. Um já foi.

– Tá bom. Pode ser. Mais dois.

– É… a Aretha Franklin.

– Ok, perfeito. Desculpe… talvez eu tenha te julgado mal, de maneira prematura. E isso me chateia muito porque o meu pai fez o mesmo comigo. E o último nome?

– … Coldplay!

– … é, não vai rolar, Kléber!

– Mas eu quero, muito!

– Quando eu soube que millenials queriam tudo pra ontem, sem esforço, eu achei que era exagero. Mas pelo visto eu vou vir parar em muita encruzilhada nos próximos anos.

– Eu não posso fazer isso com o blues porque não sou negro?

– Oi?!

– Porque eu não tenho ritmo em…

– Pára de falar Kléber, porque tem pecado que nem eu topo! Tá maluco? Isso é racismo, puro e simples! Vocês são uns merdas que animalizam os outros pra se sentirem superiores. Esse papo do contrato do Johnson comigo é mentira! Ele, simplesmente, sentou a bunda perto de alguém que ensinasse ele e praticou até o dedo sangrar. Mas pra branco entender que alguém “assim” seja um gênio tem que ter uma outra explicação, né?

– Desculpa, eu não…

– “Eu não sou racista, só falo coisas assim porque, no fundo, eu sou”.

– Tá bom! Tá bom! Já parei. Você nunca fez contrato com músicos?

– Nunca! Quando você escuta essas maravilhas você se sente abençoado, elevado, você compreende através da arte que existe algo além do mundano. Você acha que eu quero isso?

– Faz sentido. Mas então… o que eu peço?

– … posso sugerir?

– Sim, meu rei.

– Você assina e daqui por diante, até o fim dos seus dias, você vai poder falar sobre blues em rodas de conversa. Você vai poder citar músicos, músicas, vai comentar sobre a “blue note” e escala pentatônica como se realmente entendesse profundamente sobre isso. Vai conhecer o histórico e algumas anedotas da vida dos mestres do estilo.

– Uau… e eu posso entender de vinho também?

– Tudo tem limite, você tem que escolher que tipo de chato você quer ser.

– O chato do blues! O chato do blues!

– Perfeito.

O contrato se completa com “O CHATO DO BLUES”, faltando agora apenas a assinatura.

– Kléber, já sabendo que, ao assinar, você um dia virá para a minha casa…

– Sim, meu rei.

– … você dá um jeito de se livrar desse racismo estrutural? Porque é insuportável.

– Sim, meu rei. Eu prometo.

– Ok, pode assinar com isso aqui.

– Uma caneta Bic, senhor?

– Claro. No seu país, faz todo o sentido do mundo.


Esta texto foi criado inspirado no podcast História Preta, no episódio “Deus e o Diabo na Encruzilhada”. Escute o episódio clicando aqui:
https://www.b9.com.br/shows/historiapreta/deus-e-o-diabo-na-encruzilhada-a-origem-do-blues/

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