Cem mil focos de incêndio

Se conseguir evitar, não entre em uma guerra. São episódios grotescos e sangrentos e cheios de jovens açulados como cães com uma sanha homicida e você provavelmente será morto de uma forma vulgar e por um motivo indecente.

No caso de não haver remédio, certifique-se de entrar na companhia certa.

Eu, por exemplo, entraria em uma guerra ao lado de Fernando César Oliveira, e sem fazer muitas perguntas, o que é bem mais do que posso dizer da esmagadora maioria das pessoas com quem já cruzei na vida. Pode parecer meio esquisito, já que o Fernando hoje é um meganha, e eu tenho a irrefreável tendência, uma coisa quase instintiva, de encarar meganhas como inimigos da causa – qualquer causa.

Conheci o Fernando quando eu ainda estava na faculdade. Eu era estagiário na assessoria de comunicação da UFPR, e o Fernando, jornalista da casa, foi designado como meu orientador. Era um camarada agradável, profissional e, acima de tudo, não considerava que uma posição de poder equivalia a um salvo-conduto para encher o meu saco.

Era também alguém com uma sólida consciência sobre o significado de “serviço público”. Ele sabia que seu principal compromisso como servidor era com a sociedade, com a comunidade, e não com adular a chefia para obter acenos de cabeça aprovadores e tapinhas nas costas.

Mais de uma vez, comprou brigas e arranjou sarna pra se coçar por defender que o veículo de comunicação da universidade não era um meio para propagandear os feitos muitas vezes questionáveis de um reitor personalista. Uma miríade de coisas aconteciam dentro da instituição, coisas que poderiam ser importantes para as pessoas, e ele – com toda razão – queria falar sobre elas, e não perder tempo registrando uma “visita de cortesia” a um gabinete qualquer – caso você não saiba, “visita de cortesia” é um código cerimonial da administração pública que significa que ninguém que é pago com o seu dinheiro deveria estar perdendo tempo com aquilo.

Ele podia simplesmente deixar certas coisas passarem, parar de ser reclamão e ficar em uma posição mais confortável, mas não ficava. Um rebelde, do jeito dele. Um sujeito admirável. E que ficou ainda mais admirável quando terminei meu estágio e ganhei uma boa avaliação.

Um pouco mais tarde, voltei a trabalhar com Fernando, dessa vez na assessoria do deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR). Era um ambiente de trabalho excelente. Quase todo mundo ali fora forjado na briga dura dos sindicatos e movimentos sociais, na frustração diária de esmurrar paredes que jamais cediam, e quase todo mundo tinha uma história pessoal difícil, mas também todo mundo tinha bom humor, e o barco corria.

Fui pego totalmente no contrapé quando soube que o Fernando havia sido chamado em um concurso para a Polícia Rodoviária Federal:

– O Fernando? Meganha? Não pode.

Mas podia.

Mais ou menos nessa mesma época, minha relação conturbada com a bebida e outras substâncias, vetadas pela Carta Magna, alcançava o paroxismo. A vida se tornou tão incapacitante quanto um porre de tequila, e eu precisei pular do barco. Passei a conversar vez ou outra com aquele pessoal, mas essas conversas foram naturalmente se espaçando, à medida em que eu fazia minha tortuosa corrida. Gosto de pensar que ainda mantenho uma boa amizade com todo mundo ali, embora seja uma amizade distante.

De modo que quando li, primeiro aqui mesmo no Plural, a notícia de que Fernando havia enfrentado a hierarquia da Polícia Rodoviária Federal, e se recusado a cumprir ordens esdrúxulas, para garantir que informações importantes – mas que desagradavam a cavalgadura que ocupa a Presidência da República – chegassem ao público, não me espantei de forma alguma. Na verdade, eu pensei – ahá!, esse é o meu rapaz.

Não é nenhum segredo que as polícias são, hoje, uma das principais vigas que ainda dão sustentação ao projeto autoritário bolsonarista. E comprar briga dentro desses covis não é tarefa fácil – exige espinha, justeza de caráter e uma disposição meio insana para encarar represálias.

O velho Fernando podia ter deixado passar, como faz a maioria, mas preferiu traçar uma linha no chão e medir forças. Quando perdeu, como sabia que perderia, botou o rosto da janela e deu entrevistas a todo e qualquer jornal que o procurou, denunciando a censura e o aparelhamento, denunciando o projeto, e botando uma pedra no sapato da chefia.

Para se infiltrar em toda a qualquer parte, o bolsonarismo conta com a mansidão daqueles que já estão lá. A cada obstáculo que encontra no caminho, a cada sujeito que se recusa a contribuir com o bom funcionamento desse manicômio institucionalizado, a máquina de produzir escuridão engasga um pouco, treme, emperra, precisa se remodelar – e se desgasta. Pode parecer pouco, mas não é. Se todo mundo conseguir atirar cascas de banana o suficiente na pista, quem sabe o que pode acontecer? Uma coisa é certa: se você oferecer a outra face, mais cedo ou mais tarde vão te acertar com uma chave de rodas de qualquer maneira.

Se tudo der errado, você pelo menos salva a sua alma. Se tudo der certo, quem sabe a gente faz o céu dessa noite miserável brilhar com cem mil pequenos focos de incêndio. 

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