Em busca do velho

Foi aqui. Foi exatamente aqui, pensei. Há mais de vinte anos.

Eu e Beatriz saímos do Palácio da Pena quando percebi os indícios desta trilha que retomei ainda agora. Parecia promissora. Às margens do fio de terra batida, um sol vítreo perpassava os pinheiros, cintilava em enormes ovos de pedra. Sem saber aonde aquele caminho levava, convidei Beatriz a seguir por ele. Não lembro o que ela disse ou fez, o fato é que segui sozinho.

Jogo suave de luz e sombra, aroma de resina, silêncio. Logo esqueci a arquitetura de fábula do palácio, a babel de turistas. Era uma paz conhecida, provada aqui e ali ao longo da vida. Aconteceu em Heidelberg, em Santiago, Lascaux, Maldonado, em outros lugares estrangeiros em que me afastei das cidades. Andar sozinho na natureza forasteira me faz “recordar” outras vidas possíveis. Árvores, pássaros, cheiros, luzes de outros mundos libertam a imaginação de seu carrossel de referências.

A trilha era sinuosa, absorvente; não sabia o que me esperava à frente nem quão longe estava do ponto de partida.

Numa curva – esta curva aqui – vi o homem à minha frente. Tinha o andar destrambelhado e novidadeiro de meu pai. Os mesmos cabelos lambidos, reluzentes de brilhantina. Tinha, melhor dizendo, o andar e os cabelos do pai que pude costurar com os farrapos da memória e a linha do ideal.

Não era meu pai? Podia ser. Ao longo de meio século, mil vezes suspeitei que ele não havia se afogado naquela praia de Santa Catarina, em janeiro de 1971. Apenas atendera ao desejo de se libertar da família, da história, da vida prosaica, queria andar por aí sem a capa de um corpo. Era um corpo, outro, perene, dentro de minha própria arquitetura de fábula. O homem à minha frente era meu pai porque sua morte – inexplicável para um menino de seis anos – me fizera buscá-lo aquém e além dos compromissos com a realidade.

Segui-o. A trilha abriu-se. O sol acachapante diluiu o homem. Havia uma cruz manuelina encravada numa pedra sobre um penhasco. Apoiei a mão nela, maravilhado. Lá embaixo, ao pé da Serra de Sintra, o Tejo desembocava no mar.

De lá, pensei, encontrando a Torre de Belém, mais ou menos de lá, em março de 1500, Cabral partiu com uns mil e quatrocentos homens para… lá – para o infinito. Mil e quatrocentos portugueses pequeninos em cascas de nozes, sob cuja empresa feroz o Brasil eclodiria. Deuses e reis, ouro, índios mortos como moscas, negros enjaulados em porões de navios, negros mortos, falsa moral e meretrício, furtar, foder, um mar de urina, sangue, sêmen. O corpo de meu pai à deriva no futuro do passado… Recuei. A vertigem da história me fez tirar a mão da cruz ardente.

Procurei o pai.

Ele flutuava na luz oceânica.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima