Isolamento social dia 87

Querido diário: não tô me reinventando. No meu pacifismo quero socar a cara de quem fala pra aproveitar o lado do momento ruim. Que no desafio a gente renova, e que demos boas-vindas ao novo normal. Não! Pare! Se você tá se reinventando no máximo você agradece seus (muitos) privilégios e cala a tua boca. Porque você está cercado por pessoas que não podem se “reinventar”, porque elas estão correndo pra sobreviver – ou contra a Covid ou contra possibilidades econômicas escassas.

Mau humor, cinismo, excesso de realidade a parte, há poesia em esperar. Por diversas razões há poesia no se deixar estar, no aguardo, em aproveitar a eminência. Não só porque há a sequência – ela virá -, mas porque aguardar também é, neste momento, um exercício de salvar vidas.

A cada dia a mais em casa, a cada saída a menos, você colaborou com o arrefecimento das mortes incontroláveis deste momento. Deste momento, insisto, para que você não vire um ermitão que sempre fica em casa porque pensa nas muitas maneiras que poderia morrer ou matar alguém na rua! Mas hoje, se você ficou em casa, você pode ter quebrado uma corrente mais chata do que aquelas que a gente recebia por e-mail. Você pode não ter se infectado e pode ter contribuído para que alguém, que você não conhece, não tenha se infectado também. Assim, meio sem querer, você pode ter salvo uma vida.

Mas é difícil de perceber, né? Porque quando a gente faz uma cagada fica bem na nossa cara. Deixar de matar os outros por não ter passeado no shopping fica menos palpável.

Por isso, há que se buscar poesia na espera. Sentir que cada minuto foi sua contribuição para a melhoria de vida na sua comunidade e que a sua decisão também faz diferença.

Obrigado pela sua espera. Sei que é chato, mas acredite: só hoje, no Brasil, mais de 40.000 famílias prefeririam ter que lidar com o tédio do que com o luto. Por elas e por nós lide melhor com o seu tédio.

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