Auto de Natal moderno

Um espaço de ensaio, com uma grande mesa, cadeiras, papéis e canetas. Ao fundo, uma mesa com comida. Algumas pessoas estão já na mesa lendo seus textos. Outros, com uma camiseta padrão da produção do espetáculo, estão ao redor. A porta se abre e um ATOR consagrado, famoso, entra no espaço. Há um momento em que todos param, quase que em silenciosa reverência ao artista, por lembrarem de personagens que ele fez, com maestria, ao longo de sua carreira. O momento congelado no tempo só se desfaz porque alguém da produção, JONAS, vem chegando perto para conversar com a estrela.

JONAS – Boa tarde, seja bem-vindo ao nosso espaço de ensaio! Sou o Jonas, assistente de produção do Auto de Natal. É um prazer ter uma estrela como o senhor conosco nesta apresentação!

ATOR – Imagine, querido, o prazer tá todo aqui, dentro de mim. E, por favor, me chame de você.

JONAS – Ah, claro, perdão.

ATOR – A gente não precisa de formalidades atrapalhando o nosso trabalho, né não?

JONAS – Se o senhor tá dizendo…

ATOR – Você…

JONAS – Ah, é verdade! Que idiota. Desculpa, sou muito fã.

ATOR – Acontece, sem problemas.

JONAS – Bom, quase todo mundo já chegou. Essas são as outras pessoas que vão fazer o Auto de Natal com o senhor.

ATOR – Você.

JONAS – Desculpe: você! Você, você, você – repetindo eu lembro, talvez. Esta é Maria.

ATOR – Prazer.

JONAS – Este será José.

ATOR – Olá, tudo bem?

JONAS – Este é Jesus neném e aquele é como um Jesus adulto, que observa Jesus criança.

ATOR – Olá, olá, prazer.

JONAS – Essas aqui são as vacas, que serão umas vaquinhas irmãs, uma ideia bem humorada do nosso autor. Todas as coisas que falam para elas, elas respondem “Muuuuuuuuito obrigado”.

ATOR – Por quê?

JONAS – Oi?

ATOR – Por quê elas falam isso?

JONAS – Porque elas falam “muuuu” no começo, tipo, que nem vaca. Sabe?

ATOR – Ah, pra ter uma comunicação com as crianças. Ok.

JONAS – Chegamos, aqui é o seu camarim. Espero que esteja tudo do seu agrado.

ATOR – Eu tenho só umas perguntas, querido.

JONAS – Claro, pode falar.

ATOR – A senha do wi-fi?

JONAS – Na parede, ali, do lado do espelho.

ATOR – Ótimo. Que horas começa a leitura do texto?

JONAS – Exatamente em 12 minutos. A diretora foi ver uma questão do cenário, mas o autor já está aqui pra acompanhar essa primeira leitura.

ATOR – Ótimo, ótimo. E, afinal, quem eu sou?

JONAS – O senhor é uma lenda dos palcos brasileiros!

ATOR – Querido, me chama de você, por favor…

JONAS – Verdade! Você! VOCÊ!

ATOR – O que eu quero saber é quem eu sou no auto.

JONAS – … ninguém te passou? O produtor não falou com o senhor?

ATOR – Você… Não… Não, meu agente foi quem conversou tudo e eu ainda não sei os detalhes. Aí encontrei José, Maria, Jesus e as vaquinhas, então sei quais papéis eu não vou fazer.

JONAS – Ah, entendi… Também, uma pessoa tão importante quanto o senhor…

ATOR – Você…

JONAS – Você! Verdade! Vou me acostumar.

ATOR – E quem eu sou?

JONAS – O senhor é o espírito do Natal!

ATOR – … tipo o Espírito Santo? Não dá, meu filho. Eu não vou aceitar ficar numa fantasia de pomba, já vou avisando, porque estou num contrato com uma empresa de carnes e só lá que eu posso ser relacionado com…

JONAS – Não! Não, nunca! Não é pomba, e nem é o Espírito Santo. Não, não.

ATOR – Ótimo.

JONAS – VOCÊ – viu?, já tô me acostumando – vai fazer o capitalismo. Sua roupa tá logo ali, nas medidas. Logo venho buscar VOCÊ para…

ATOR – Desculpa, não entendi. Eu sou o quê?

JONAS – O senhor faz o capitalismo. Afinal, a gente não chamaria VOCÊ aqui se não fosse pra ter o papel mais importante. Daqui a pouco o autor vem conversar sobre o texto e vai ficar mais claro.

ATOR – Capitalismo? Que capitalismo? Nunca vi coisa assim em Auto de Natal.

JONAS – É uma proposta ousada do autor. O capitalismo nasce na hora em que o filho de Deus recebe os presentes – bens materiais, né? – e, como o filho de Deus aceita, desde então ele acompanhará o Natal pra sempre.

ATOR – Jesus bebê faz o capitalismo surgir?

JONAS – É! Bem ousado, né?

ATOR – Mas que absurdo!

JONAS – Eu também achei, como ninguém pensou nisso antes? É muito bom.

ATOR – Eu achei absurdo de ofensivo.

JONAS – Por quê?

ATOR – Eu vim fazer um Auto de Natal, fofinho, pras famílias tirarem selfie e voltarem felizes pra casa. Não uma dessas baboseiras moderninhas!

JONAS – Mas você…

ATOR – Não, não gostei! E pode voltar a me chamar de senhor!

JONAS – Mas o senhor assinou um contrato. E, fazendo esse trabalho, o patrocinador – que, por um acaso, é pai do autor – se comprometeu de bancar o seu novo espetáculo.

ATOR – Oi?

JONAS – O produtor realmente não contou nada pro SENHOR, né?

Há um instante de silêncio entre os dois. Ouve-se uma batida leve na porta e o AUTOR do espetáculo vai entrando, devagarinho, meio que pedindo desculpas pela invasão com o corpo e já vai falando.

AUTOR – Com licença, com licença. Que prazer ter VOCÊ aqui na nossa produção. A sua agente me antecipou que VOCÊ não gosta de formalidades. E aí, me conta: curtiu a minha versão do Auto de Natal e do seu personagem?

O ator olha pro autor, olha pro assistente de produção.

ATOR – …achei “Muuuuuuuuuuuuuuuuuito” legal.

Sobre o/a autor/a

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