Lia – Capítulo 48

Então. Você está sozinha aqui. Não é que nem de manhã, quando estava todo mundo em volta. Ou todo mundo no centro e você sozinha em volta. Essa que foi a verdade. Depende da hora de que a gente esteja falando.

Como eles riram de você…

E como te custou. Te custou cada volt de tensão interior, cada fiapo de orgulho, manter uma aparência de orgulho, apesar da tensão. Sustentar na aparência a imagem de que aquilo nem te interessava, de que você estava acima daquelas coisas, e da pressão deles todos. Se pôr superior. Ficar acima da mesquinharia das pessoas que você mais amava no mundo. Simplesmente porque eram teus primos, teus amigos. E quando você tem oito anos de idade esse amor se vende barato. E se cumpre imediato.

E claro que você não conseguiu. Eu sinto te informar.

Eu sei que no fundo você sabe, que não precisava uma outra voz vir confirmar o teu fracasso. Mas mesmo assim. Mesmo assim…

Eu sei que você percebeu que apesar de conseguir conter o lábio inferior que queria se projetar, apesar de prender os dois lábios entre os dentes e morder a lateral da bochecha esquerda, por dentro, que apesar de tudo isso o teu queixo ainda tremeu. Eu sei que você mesmo de dentro do teu crânio conseguia quase enxergar a aparência de caroço de pêssego que o teu queixo devia ter naquele momento.

A vida é assim quando você tem oitos anos. E, Lia, não sei se muda tanto assim depois.

Você morde as partes móveis pra elas ficarem cravadas no lugar. Você literalmente morde a língua, se for o caso. Mas uma coisa inerte e inexpressiva como um queixo… E tudo cai por terra.

*

Os teus primos te amavam de verdade. Nenhum deles tinha mais de onze anos. Ainda era possível esse tipo de amor. E foi bem por isso que eles todos perceberam, e não perdoaram, a tua quebra por dentro. A tua demolição por trás da fachada quebradiça, vibrante, enrugada, mas intacta. Mais vinte anos e eles simplesmente não iriam mais se importar. Infelizmente.

*

Agora você está sozinha com a árvore do meio do quintal. No meio do quintal.

E já saiu do chão.

Sem chinelo. Não sei se foi uma boa ideia, Lia. Mas agora não dá pra voltar atrás. Voltar atrás terá sempre sido o problema insuperável. A árvore era mais áspera contra a sola dos teus pés do que você podia ter imaginado. Mas até aqui foi fácil. Você segurou num galho baixo e num balanço firme jogou o corpo um meio metro mais acima, até pisar na forquilha entre um galho e o tronco. Mas a perna direita não tinha aonde ir. Estava solta no ar, pendurada do vestido azulzinho que bem o badalo de um sino. Pé.

Um pouco mais acima, um apoio para ela. Ótimo. Você põe ali a direita e agora está desequilibrada. O único jeito de eliminar a tensão do peso nos braços é mudar também a esquerda mais para cima. Trocar as mãos. As únicas partes de você que agarram de fato a árvore. Manter uma no lugar e rapidinho passar a outra para um novo galho. Que quebrou.

Você não caiu. Mas o movimento te fez raspar a testa no tronco. E te fez olhar em volta para ver se ainda estava sozinha.

Apesar daquela pancada, a coisa era de fato mais fácil do que parecia. As tuas mãozinhas suadas iam dando conta de não largar a árvore. E você aprendeu a primeiro testar os galhos antes de soltar o peso. E foi trocando apoios tronco acima.

Em pouco tempo, com cuidado, você estava enxergando (como eles queriam de manhã cedo) em cima do teto da casa. E logo estava enxergando por cima do teto da casa.

Acho que foi exatamente nesta forquilha que o Armando sentou também. Embora ele não estivesse o tempo todo com as mãos vermelhas segurando desesperadas o galho ao lado. Mas você está sentada ali. Firme. Encarapitada onde ninguém, muito menos você, dona Lucília, achava que podia chegar.

Devia estar feliz. Mas o queixo está enrugando e a testa, dolorida.

E tudo cai por terra.

Você inclina a cabeça para esfregar a testa no ombro sem largar o galho. Era. Era sangue mesmo. Um quase nada. Mas nesse gesto você desvia os olhos da campina do outro lado da casa e vê o chão lá no chão. Como é que você vai descer daqui, Lia?

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