Em branco

Folha em branco. Nada por hoje.

Pergunto aos amigos se têm algo a dizer.

“Alguém, alguma coisa que valha contar?”

Se as coisas não correm rio afora, tampouco rio dentro: por hora nem assombro do que seja a graça.

O céu anda cimentado de cinza.  E isso lá é um país tropical? Passar frio dentro de casa por falta de calefação é indecente. Meu amigo Victor González confirma: os pobres portenhos desconhecem nosso apuro, reforçando a tese de que minha cidade convoca o ressentimento dos ossos.

“Ustedes quieren ser el reino de Dinamarca, pero tiritan de frío en sus propias casas.

Anda a la mierda con esa cara de Europa, esto es puro subdesarrollo latino.”

Folha em branco. Nada por hoje, de novo.

“Circundar a falta. Não morar dentro, tampouco esvaziá-la”, disse o místico lacaniano em seu lampejo de humanidade.

“E você quer que eu faça da falta uma guirlanda de natal?!”

Três meses depois, entro no Tinder.

Para o meu espanto, agora são todos não monogâmicos.

Meu experimento durou exatos três dias. Tenho convicção que os bons encontros só se dão em livrarias, e por isso, gasto minhas sobras tomando café.

Narrar a falta é muito difícil, confesso: me faltam habilidades literárias.

Não consigo dar tons de profundeza às coisas que rastejam, embora tente.

Em uma dessas noites que precedem o outono, andava em alto pela Marechal Mallet, quando tropecei numa poça de esgoto e vi o reflexo da lua.

Não sei se foi a lua refletida ou se foi só o reflexo da lua.

Em todo caso, acho que era o dedo do Buda apontando pra mim.

Volto pra casa com um pequeno corte na testa e uma enxaqueca de latejar nas têmporas, desmaio e acordo com a lambida de Aderbal.

“Ah, qualquer carinho já é alguma coisa.”  Não é todo dia que tenho dois band-aids cruzados na testa, normalmente ninguém me pergunta o que aconteceu. Tampouco posso confessar que andei mal das pernas, pois a possibilidade de ser mulher e ao mesmo tempo farrapo, soa como uma afirmação criminosa.

Pura porcelana inquebrantável, a mulher não se desfaz na rua, porque até diante da queda, deve estar atenta: há que se cair aos modos de uma mulher.

Não seria esse texto melhor narrado por um homem? E se um dia alguém me procurar no LinkedIn?

Não são horas para neurose. Aderbal anda com fome. Onde comprar ração no domingo?

Folha em branco. Nada de novo debaixo do sol.

Até porque não há sol nem previsão.

Houve um tempo em que o vento andava parado. As paredes começaram a criar limo e a umidade foi corroendo o bom senso das coisas: nada acontecia.

Sabe-se que havia uma guerra distante, acompanhada pelo rastro de uma praga que já não botava espanto. Uma folha em branco, uma falta, uma guirlanda com flor de espírito santo pendurada em minha porta.

Não sou católica, nem é natal. Por que diabo minha mãe traz essas coisas pra cá?

Até que um dia, algo se deu.

Cheguei dez minutos adiantada no consultório, um hábito ritualístico de cada sessão.

“ Hoje eu não tenho muito que dizer”.

E não digo. Desço um gole d’água para desobstruir a palavra. Me engasgo.

“ Desculpe… Pera. Me engasguei e pedi desculpa? ”

“ Hoje encerramos por aqui.”

Sigo engasgada pelos duzentos reais que me custaram os trinta segundos de sessão. A análise, no entanto, se estende para lugares inusitados.

“Não tenho muito o que dizer”, lhe digo, e por isso mesmo a palavra se libera.

No desandar das coisas tropeço, vivo caindo.

Dos caquinhos que encontro, escrevo umas coisas que invento

e outras tantas que me ocorrem quando nada está acontecendo.

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