Ilustres desconhecidos

Todos os dias, por volta das seis e meia da manhã, ela já está ali, varrendo o jardim do condomínio ou catando com paciência monástica, uma a uma, as flores que caíram dos ipês ao longo da noite anterior. Eu a vejo assim que dobro a esquina, em passeio matinal com Capitu, minha cachorrinha. De imediato, achei entre cândido e curioso aquele labor diário. “Ela varre o gramado!”, exclamei, comigo mesmo. Umas quantas vezes, tentei cumprimentá-la, mas desisti: ela desviava o olhar instantaneamente, quando percebia que eu a fitava. Paciência. Fato é que nada sei a respeito da senhorinha do jardim, além do que sugerem minhas próprias inferências, brotadas a partir dessas observadelas rápidas: deve ter pouco mais de sessenta anos, morar no térreo e ser tímida.

Depois de passar por ela, caminho até a outra esquina, onde invariavelmente recebo um afável “bom dia” do dono da banquinha – um polacão grisalho, sempre calçando All-Star preto, impecável, e casado com uma negra sorridente, dessas que prontamente nos soam familiares. De quando em quando, Capitu e eu nos encontramos com uma loira de andar vagaroso, que sempre traz pela coleira o Little, um pinscher espevitado e, por incrível que pareça, pacífico – um dos poucos cães para quem a minha cachorrinha não late feito uma endemoniada. Adiante, passamos por um velhinho que fica à calçada, com uma touca de lã enfiada na cabeça – faça chuva, faça sol –, e que costuma saudar os passantes com uma mesura solene, escorado em um cabo de vassoura, à guisa de bengala.

Os personagens do fim da tarde e comecinho da noite são outros. A uma das janelas térreas do prédio da esquina, a mulher de cabelos esbranquiçados dá de cumprimentar os transeuntes, mas se alguém para entabular conversa, ela vira as costas e sai de cena. “Ela tem um probleminha”, disse-me uma vizinha, certa vez, apontando para a própria cabeça. Na calçada outra quadra, inúmeras senhorinhas levam cadeiras de praia e ficam de prosa, aproveitando – quando há – o solzinho do entardecer. Entre elas, uma mulher sólida e brilhante, que, quando nos vê, grita: “Capi-tu!”, dando ênfase à sílaba final. Sem pudores, minha cachorra, então, pula no colo da vizinha, que gargalha gostosamente, enquanto afunda os dedos pela pelagem da vira-latinha. Antes de voltar pra casa, às vezes, converso rapidamente com a dona da padaria artesanal, que apregoa os pães da última fornada. “Acabou de sair italiano, integral de aveia com chia e ciabatta”.

Parece tudo muito banal. E é. Nos períodos mais rígidos de isolamento social ao longo da pandemia, dei-me conta de que não sei o nome de nenhum desses coadjuvantes dos meus dias. Ainda assim, principalmente em um tempo em que nos vimos obrigados a deslocar grande parte de nossas relações sociais para uma tela, esses anônimos foram conexões importantíssimas que trouxeram, ainda que involuntariamente, certo apoio emocional para atravessar o período mais turbulento. É como se a presença desses quase estranhos trouxesse certo sentido ao cotidiano, indicando que algo ainda estava no seu lugar. A velhinha do jardim ou a senhorinha da calçada ainda estão ali, apesar de tudo.

Por alguns instantes, no entanto, senti certo estranhamento. Está claro que meus anônimos fazem parte do meu contexto e ajudam integram parte importante de minha tessitura social, como também devo ser parte mais ou menos importante de seus respectivos cotidianos. Se é assim, por que não me apresentar formalmente? Sou bicho do interior e gosto de jogar conversa fora, oras bolas. Por outro lado, confesso que temi que certa intimidade talvez violasse a atmosfera familiar que essas figuras têm me inspirado. Não sei bem. Decerto, é melhor mantê-los no pedestal do anonimato. Por ora, eles permanecerão como estão: como meus ilustres desconhecidos.

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