A natureza como sala de aula

Colégio de Curitiba pratica o “desemparedamento” do ensino infantil

Educação que extrapola as paredes das salas de aula. Crianças de dois a cinco anos que se desenvolvem por meio da experimentação, brincando e interagindo com os colegas, a natureza e os profissionais da educação, em um local onde a educação infantil vai muito além do brincar e cuidar e em nada lembra a cartilha da abelhinha, com a qual muitos dos pais dessas crianças provavelmente foram alfabetizados. O Plural foi visitar o Colégio Medianeira, instalado há 65 anos no Prado Velho, e conta o que viu na área com mais de 145 mil metros quadrados.

Desde a entrada do Medianeirinha, parte do colégio dedicada à educação infantil, tudo remete a um mundo que transpira descobertas. A começar pelos corredores que expõem a produção de conteúdo e projetos que estão sendo desenvolvidos com e pelas crianças. As mochilas enfileiradas nos corredores são uma demonstração de disciplina, responsabilidade e autonomia, pois cada pequeno já sabe que tem de deixá-la do lado de fora da sua sala, de forma organizada. O prédio comporta a educação infantil, onde estudam as crianças de 1 ano e 11 meses a 5 anos e 11 meses, quando estão prontas para fazer a transição para o ensino fundamental.

A esfera diferente dos corredores também é percebida e ampliada nas salas de aula. Esqueça o modelo “tradicional” com mesas e cadeiras, ou as conhecidas carteiras escolares: nas salas do Medianeirinha a reportagem mergulhou no mundo da imaginação infantil. Em uma delas, a reprodução do fundo do mar; em outra, pinturas feitas pelas crianças que contemplaram desenhos de Van Gogh e, por meio disso, aprenderam profundidade, cores, e puderam observar e aprender com o crescimento dos girassóis que eles mesmos plantaram e fizeram a relação com uma das obras o artista.

Continuando a visita, a coordenadora pedagógica da unidade, Kátia Sampaio, ela explicou como cada turma vai explorando um tema que surge das próprias crianças e são aproveitados e explorados pelas professoras até se esgotarem as possibilidades. Exemplo disso, além dos já citados, é o da turma de nível três em que a observação de uma aranha na área externa da escola por um dos alunos provocou: a investigação sobre como o aracnídeo tece suas teias, quantas patas e olhos; crianças de três anos usando teares e compreendendo como as aranhas tecem; outra turminha que aprendeu, também por meio da observação de uma tradicional joaninha vermelha com bolinhas pretas, que existem vários outros tipos e o que elas representam na natureza. O conteúdo programático da educação infantil sendo explorado por meio da observação cotidiana feita pelos alunos, que protagonizam o processo de aprendizagem, como explica a coordenadora.

“Tudo começa pela concepção de criança que a gente entende. Não é uma criança estática, é uma criança que tem um corpo, que está em movimento e em crescimento. As salas de aula já mostram essa concepção de infância que a gente tem, sem objetos fixos, que podem ser moldadas conforme o que a professora quer proporcionar para cada criança nessa investigação. No caso da sala da professora Bruna, por exemplo, ela foi se constituindo nesse fundo do mar depois que uma criança trouxe uma sereia e pediu para ela fazer um mar; desde então esse mar é dinâmico e traz vários elementos para a aprendizagem. Nada é estático, as professoras não trazem, por exemplo, um desenho para que as crianças pintem todas o mesmo desenho e sim, durante a investigação, cada uma reproduz, da sua forma, o que é visto, cada uma no seu tempo. Então o resultado é um desenho diferente de cada criança e é maravilhoso ver crianças tão pequenas darem conta do que os pais não imaginavam que seria possível, como crianças de três anos recitando poema em inglês, tendo acesso a autores e livros que só teriam em séries mais avançadas”, diz Kátia.

A educação na unidade é bilíngue (português e inglês), o que é percebido também em todas as salas e corredores. No ambiente interno, as crianças também têm acesso a salas diferentes, como a de música, onde têm aulas com a utilização de vários instrumentos, por meio da musicalidade; e a de representações artísticas.

Crianças têm contato com o mundo real chova ou faça sol. Foto: Divulgação

Quem teve a oportunidade de crescer em meio à natureza, subir em árvore, correr com os pés na terra e na grama, ver pássaros, insetos, correr livremente, cair, levantar, talvez nem se dê conta do quanto algo tão simples impacta na formação do ser humano. Tudo isso compõe a “alfabetização motora”, essencial para contribuir com aspectos como equilíbrio, fortalecimento muscular e, somado a isso, a contribuição à formação psicológica e intelectual.

“Temos todo esse espaço físico, uma natureza exuberante, com vários bosques e utilizamos esses espaços como uma sala de aula, fora do espaço físico fechado. Então, a gente usa muito esse espaço externo, até costumo brincar com os pais que é um uniforme por dia, porque aqui eles fazem as experiências deles, tem um escorregador natural, aliados aos espaços também externos em que as crianças fazem essa alfabetização motora. Muitas vezes a gente não fala dessa alfabetização motora, porque dentro de um centro urbano, às vezes é muito mais difícil a criança ter, desenvolver esse equilíbrio, subir em árvore, escalar. Então, a gente percebeu que essa parte ficou muito prejudicada com a pandemia, em que as crianças ficaram muito confinadas em casa”, explicou a coordenadora.

Deixar as crianças pequenas na escola, de dois, três anos, muitas vezes representa a expectativa de que o colégio será uma extensão da casa, em termos de proteção e cuidado. Mas a coordenadora pedagógica do Medianeirinha defende que é preciso deixar as crianças se desenvolverem e explorarem o mundo. “Comecei em uma época em que se focava muito no cuidado, em proteger a criança, tirar tudo que pode ser perigoso, proteger com EVA, borracha, etc. Mas assim eu não proporciono essa alfabetização motora da criança. Então, aos pouquinhos fomos adaptando e explorando ao máximo todos os espaços e hoje estamos em um movimento de que sim, tem que ter o cuidado, mas explorar isso tudo com segurança, pois tudo isso tem a ver com o processo cognitivo também. O descer, o subir, o se arriscar, então isso tem um processo de alfabetização que depois contribui para o processo cognitivo”, falq Kátia, que atua há 23 anos na unidade que integra a Rede Jesuíta de Educação.

E para quem pensa que as intempéries de uma cidade como Curitiba, que faz frio e chove muito, é um problema. A coordenadora garante que não.

“É uma coisa que a gente também rompeu. Não existe tempo ruim, essa coisa de cair na chuva também faz parte, deixar de ir lá fora porque está molhado, de forma alguma. Daí as crianças vão se sujar mesmo, ainda que usem galocha e capa de chuva, é uma experiência diferente. Claro que se estiver um frio muito forte, tudo a gente avalia, e sempre vai olhar com a visão do cuidado com a saúde também, mas sem deixar de proporcionar essa vivência de se reconectar com a natureza. Eu vejo que essas crianças que têm essa oportunidade, elas apresentam um repertório. Seja narrativo, repertório motor, o repertório até de alfabetização, porque ela está em contato com isso, deixa de ser algo mecânico. Então hoje eu vejo uma narrativa das crianças, contando histórias, imaginando coisas, muito mais do que um tempo atrás, em que o processo ainda era algo mais mecanizado”, diz Kátia Sampaio.

E quando chega a hora de dar adeus à educação infantil e fazer a transição para o ensino fundamental esse contato com a natureza permanece e o olhar de investigação permanecem.

“Lá no primeiro ano, é um primeiro ano que vai acolher essa criança, que saiu da educação infantil, com toda essa possibilidade de investigação lá eles também vão ter um pouquinho mais disso, vão ter possibilidades de investigar. Claro que com uma relação de tempo diferente daqui por fazer parte do fundamental, de ter um currículo já diferenciado e tudo mais, com algumas exigências, mas é possível vivenciar. Eles fazem essas proposições para que essa transição seja gradual e não um choque. Então começamos desde outubro a vivência dos espaços, de fazer entrevista com as crianças de lá, de propor algumas atividades junto com as crianças do primeiro ano, de conhecer as diferentes professoras. Claro que o foco do primeiro ano é mais na sistematização da alfabetização. Aqui o nosso foco ele é de criar repertórios, que a criança possa vivenciar e experimentar e elas levam toda essa vivência, toda essa bagagem para lá”, finalizou Katia, já na sala da orientadora de aprendizagem do 1º ano, Mônica Diva, com quem o diálogo é constante.

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