Por que convidamos antissemitas a museus do Holocausto?

Concordar ou não com a possibilidade de despoluir de imediato a mente dessas pessoas não significa atingir o cerne da discussão sobre tais convites. O propósito é muito maior

“Adoro quando a resposta ao antissemitismo é convidar o ofensor para um Museu do Holocausto. Há algo mais judaico do que convidar alguém para uma atividade chata onde eles aprenderão sobre genocídio e terão que prestar muita atenção em alguém falando com você por horas?”. Este tweet da influenciadora australiana Shoshana Gottlieb, criadora das páginas Jewish Memes Only e mestranda em educação na Universidade Hebraica de Jerusalém, rodou o mundo após o convite do Museu do Holocausto de Los Angeles ao rapper Kanye West, em decorrência dos comentários recentes dele sobre uma possível conspiração judaica internacional.

Apesar do tom bem-humorado, o tweet levanta discussões mais profundas. A prática de convidar políticos, celebridades e influenciadores a visitar museus depois de falas desastrosas (e muitas vezes criminosas) tornou-se comum – seja por lideranças judaicas, por entidades comunitárias e até por forte própria pressão da sociedade, principalmente vinda das redes sociais. No entanto, pedir que figuras públicas visitem museus do Holocausto seria uma estratégia eficiente no combate ao ódio? De Monark a Kim Kataguiri, passando pelo jogador de basquete da NBA Meyers Leonard e o apresentador Nick Cannon, seriam essas visitas de fato efetivas e transformadoras para alguém? Em outras palavras, quais os efeitos práticos e reais tanto dos convites oficiais quanto das visitas em si?

Há controvérsias. Em primeiro lugar, é preciso refletir sobre quais os objetivos reais dessas chamadas e, em certa medida, em quais situações elas podem ser úteis na missão de educar contra o racismo e a intolerância. O argumento de que a visita tem exclusivamente a finalidade de mudar as concepções dessas pessoas envolvidas é incerto e duvidoso. Poucos assumem a responsabilidade de suas falas e nos inundam com expressões como “fui mal interpretado”, “foi tirado do contexto” e até o famigerado “sou amigo dos judeus e de Israel”. Alguns até publicizam suas próprias visitas em posts e stories, construindo uma imagem tolerante e buscando mais seguidores em suas páginas. A diretora do Museu do Holocausto de Washington, Sara Bloomfield, destacou recentemente sua sensação de que é muito difícil mudar o pensamento de indivíduos com pontos de vista antissemitas. “Eu pessoalmente duvido muito que uma visita a um museu do Holocausto possa fazer isso”, afirmou durante uma entrevista.

Se a gestora de um dos maiores espaços de educação e memória do Holocausto no planeta duvida que uma rápida visita sensibilize e modifique concepções racistas dessas cabeças, por que os convites continuam sendo feitos? Acreditar nessa incapacidade de mudança não seria enfraquecer o poder transformador de uma educação universal sobre o Holocausto e as tragédias humanas? Aviva Miller, diretora norte-americana da Auschwitz Jewish Center Foundation, é mais otimista. Embora ela reconheça que as pessoas que visitam os museus do Holocausto ainda podem manter atitudes antissemitas, ela acredita que isso abra portas para possíveis mudanças e que cada caso é um caso.

No entanto, concordar ou não com a possibilidade de despoluir de imediato a mente dessas pessoas não significa atingir o cerne da discussão sobre tais convites. O propósito é muito maior e envolve a responsabilidade social que essas instituições nutrem ao participarem do debate público e influenciarem mais do que o responsável pela fala antissemita. Essa é uma premissa fundamental da nossa existência: museus não podem ser bolhas de conteúdo enciclopédico. Eles precisam dialogar abertamente com a sociedade, interagir com seu entorno e participar dos momentos em que é necessário o gerenciamento de crises sociais ou de alertas democráticos. Exatamente o nosso contexto.

Voz e responsabilidade social

Em fevereiro de 2022, quando estourou o “caso Monark”, o Museu do Holocausto de Curitiba fez e reiterou convite pelas redes sociais. Após alguns dias, ele agendou a visita e compareceu, mas o intuito da instituição sempre foi muito maior: capitalizar eventos lamentáveis (e às vezes infames) para algo realmente construtivo para a sociedade como um todo, independentemente se o rapaz aproveitaria ou não a visita para rever seus conceitos equivocados – o que, aparentemente, apesar da boa vontade, não aconteceu. Mais do que produzir notas de repúdio, a busca incessante – levando em consideração os casos que merecerem uma abordagem policial e jurídica por parte de outros grupos – é por se posicionar perante a opinião pública e aproveitar para atingir mais cidadãos dispostos a ajudar na construção dessa memória. Trata-se de agir de acordo com o importante papel social dos museus e desenvolver estratégias de abordagens voltadas à participação e à mobilização de pessoas e grupos organizados. Em suma, aproveitamos oportunidades para reduzir a aura mítica dos museus como instituições alheias ao que acontece ao redor e participar das discussões pautadas pela sociedade.

Com esse simples convite (e antes da visita em si), foram dois dias ininterruptos de entrevistas e declarações aos mais variados canais de comunicação: rádios, tvs, podcasts e blogs. Os telefones do Museu não pararam de tocar – na maior parte das chamadas, potenciais visitantes agendando seus horários: turistas, famílias e curiosos. Escolas entraram em lista de espera para levar ao museu seus alunos, de diferentes locais e idades. As redes multiplicaram seus alcances e novas parcerias foram estabelecidas nas áreas acadêmicas e de Comunicação. O mesmo aconteceu nos Estados Unidos após o “caso Kanye West” (que rejeitou o convite). A diretora do Museu do Holocausto de Los Angeles, Beth Kean, afirmou que o engajamento aumentou positivamente e que novas escolas locais começaram a agendar visitas mediadas – inclusive algumas chegando ao espaço sem aviso prévio.

À medida que educadores e o público jovem se dirigem espontaneamente a um museu do Holocausto, outras portas se abrem e cumprimos nossa missão de educar e de transformar – independente se a visita específica do responsável por todo o rebuliço o sensibilize ou não. Ao contrário do que tweetou Shoshana Gottlieb, não se trata de uma questão de humor judaico, e sim de cidadania. O mesmo ocorre em potenciais convites ao Museu Afro Brasil, ao Museu da Diversidade Sexual, ao Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro, a espaços de memória sobre a ditadura militar e até sobre a pandemia de Covid-19.

Nem sempre o convite espontâneo ao responsável por uma fala racista ou historicamente deturpada é a melhor – ou pelo menos a única – estratégia para lidar com as consequências de um discurso deplorável. A depender de cenários e circunstâncias, como o alcance e a gravidade, possíveis soluções envolvem esferas institucionais e até jurídicas, no campo criminal. Medidas judiciais cabíveis são importantes para demonstrar que não existe liberdade plena no Brasil: há leis e limites; e a liberdade individual se limita quando se choca com a liberdade do outro. No entanto, tais convites extrapolam o envolvido e atingem uma esfera muito maior de potenciais receptores da mensagem do museu, sejam pessoais ou institucionais.

Vivemos um momento social turbulento em que museus com temáticas de combate ao ódio e à intolerância precisam cada vez mais participar do debate público e, quando necessário, convidar pessoalmente figuras públicas responsáveis por declarações execráveis. Não por crer numa redenção instantânea delas, mas por entender a responsabilidade social dos museus e alcançar também outros públicos, num efeito dominó. Pode ser ainda uma utopia, mas esperamos, num futuro próximo, que esses convites sejam cada vez mais raros e desnecessários. Seguimos incansáveis.

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