O ajudante de cozinha: uma crônica de afeto

Um ajudante de cozinha é tudo no dia a dia dos preparos dos pratos, seja num grande e renomado restaurante ou no aconchego familiar

Talvez ninguém lembre, ao apreciar um bom prato no restaurante ou mesmo nos almoços de domingo em casa, que por trás de um grande chef, profissional ou do lar, sempre tem um ajudante de primeira. Praticamente invisível, jamais é mencionado nos momentos dos elogios ao que é servido. Ninguém mesmo sabe ao certo o que é preciso para ser um ajudante de cozinha justamente porque esse não é lá dos cargos mais cobiçados no mercado de trabalho, ainda que doméstico. Sequer exige alguma capacitação específica. É um “faz de tudo”.

Por isso mesmo um ajudante de cozinha é sempre um quase: um quase chef, ele ajuda, faz a pior parte de cada receita, mas não sabe (ou não lhe deixam) prepará-la sozinha, sem aquela voz no seu ouvindo, dizendo “assim não, cortou demais, abaixe o fogo, não mexa na panela”… ; um quase garçom, prepara o prato, a bandeja até, mas não a carrega, fica de longe, observando a reação do cliente; um quase dono de restaurante, sabe o que propor, tem a intuição do que pode ou não dar certo, mas nem chega a expressar suas ideias, por timidez ou resignação mesmo. Em casa, faz de tudo um pouco e ainda lava a louça e limpa a cozinha, quando o chef desfruta do conforto da sala, pois afinal de contas: quem cozinha não lava a louça.

Um ajudante de cozinha é tudo no dia a dia dos preparos dos pratos, seja num grande e renomado restaurante ou no aconchego familiar. Lá em casa sempre foi assim, cozinhar sempre foi um ato partilhado. Os elogios iam para a cozinheira, mas ele ficava na retaguarda. Se precisasse de coco fresco, era ele quem furava a fruta, tirava a água, quebrava a casca dura, tirava com a faca a mais fininha – o pior de tudo – e finalmente o levava para ralar na velha máquina que parece aquelas de moer carne.

Se fosse preciso cozinhar a moranga para fazer tortéi, era ele quem a cortava em pedaços e colocava na panela imensa. Depois, ralava o pão, amassava com o garfo a moranga já cozida, provava o tempero (ajudante é ótimo para provar os pratos e dizer se está devidamente salgado ou não). Na hora de preparar a massa, era ele quem fazia o serviço pesado de amassá-la e passá-la pacientemente no cilindro, cortando as rodelas – para eu não machucar a mão – para serem finalmente recheadas e fechadas. Passávamos horas fazendo isso, às vezes quase sem falar nada. Nem era preciso. O prazer que esse trabalho partilhado nos proporcionava dispensava conversas.

É ele quem prepara o mise en place para a elaboração dos pratos. Foto: Rosa Maria Dalla Costa

Lembranças à parte, de um modo geral, o problema do ajudante é quando ele resolve tomar iniciativa e fazer o que não foi pedido. Salgar bacalhau no jantar de degustação de vinhos portugueses ou enxugar a louça, por exemplo. A cozinheira sempre deixa secando um ou outro utensílio que ainda vai usar. Ele vai lá enxuga e guarda. Estresse! Cadê minha colher de pau?

Tem ainda os ritmos diferenciados: tem que ser rápido para cortar as castanhas grosseiramente. Não dá para sentar, ajeitar a tábua, cortar de pouquinho em pouquinho. E, de preferência, tem que “adivinhar” o que o cozinheiro está pensando: não de comprido, você não sabia as batatas deviam ser cortadas em fatias?

Tem que saber lidar com o fogão, à lenha, claro. Mais lembranças. Só ele sabia fazer isso. Primeiro escolhia no bosque os troncos certos, serrava um a um sem fazer muito barulho para não levar pito da síndica, empilhava todos eles no seu espaço exclusivo, embaixo da escada e ia alimentando o fogo pouco a pouco, procurando regular a hora de cozinhar e de dourar o assado. Não é à toa, que como ninguém, ele gabava o seu feito: “esse forno é bom mesmo, não é? Ficou no ponto certo!”

O bom ajudante deve ainda plantar e cuidar da horta, apoio fundamental para qualquer um que pretenda fazer pratos minimamente qualificados. E tem que colher o que se pede na quantidade certa: só umas folhinhas; não tão pouco assim! Lá vai ele da cozinha para a horta, faça chuva ou faça sol.
A ele cabe ainda cortar as cascas de laranjas em tirinhas bem finas; preparar as jarras de água com hortelã, untar formas, abrir as garrafas de vinho para arejar, cortar a baguete em fatias iguais para as bruschettas, escolher folhinhas iguais de manjericão para enfeitá-las…

Enfim, não é qualquer um que pode ser ajudante de cozinha, não. Tem que ter paciência, dedicação, disciplina, mas sobretudo ternura, generosidade e companheirismo, resignação, amor. Ao melhor ajudante de cozinha de cada dia, ao meu em especial, o mais sincero e afetuoso agradecimento.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

À minha mãe

Aos 50 anos, a vida teve a ousadia de colocar um tumor no lugar onde minha mãe gerou seus dois filhos. Mas ela vai vencer

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima