Emergência

O pior era o turno da noite. Me destratavam e, se eu chorasse, era pior: me amarravam, mesmo sem estar em convulsão

Hospitais são ambientes comuns em filmes de terror. Sempre imaginei que o motivo seria o excesso de mortes no local. Hoje penso diferente. Hospitais podem ser acolhedores por salvarem vidas, mas ao mesmo tempo, assustadores por as danificarem.

Há muita curiosidade a respeito do coma. Praticamente todo mundo que teve uma experiência de quase morte, e passou pelo estágio do coma, recebe uma avalanche de perguntas de como é essa sensação. O que ninguém quer saber, e que talvez seja mais importante, é o inferno que muitos de nós passamos ao despertar dele: a UTI. A vida em um hospital, especificamente na Unidade de Tratamento Intensiva, é um desespero à parte. Não apenas pelas dores, pela falta de mobilidade e pela constante e terrível imagem do teto sobre nossos olhos. É lá que encontramos tanto a generosidade como a maldade humana.

Durante o tempo em que estava internada, o pior momento era o turno da noite. As pessoas me destratavam e, se eu chorasse ou reclamasse, a situação piorava: poderia ter meus membros amarrados, mesmo sem estar em convulsão. Meus braços sempre estavam machucados pelos acessos, não só porque minha pele é fina, mas porque eles eram colocados e retirados com rispidez. Tinha noites em que minhas fraldas vazavam e eu era obrigada a dormir sobre a minha própria urina.

Era horrível. Nesses casos, só era limpa quando a enfermeira do turno da manhã chegava. Quando isso acontecia, me sentia salva, até perceber que o tempo estava passando e viria mais uma longa noite pela frente.

Além desses maus cuidados físicos, a tortura psicológica também tem seu espaço reservado na UTI. Deboches e piadas com pacientes são comuns. Um amigo meu, sobrevivente de AVC de tronco (que impossibilita a mobilidade do pescoço para baixo), já me relatou ter ouvido constantemente dos técnicos de enfermagem, entre risos e beliscões em seu corpo imobilizado, expressões como: “de que agora ele não serviria mais para nada” e que “viver desse jeito era pior do que se estivesse morrido”.

Hoje, cerca de seis anos depois, Rogério corajosamente faz suas terapias diárias e reconquistou parte de sua fala e certa mobilidade no corpo. Ele ainda está na cadeira de rodas. Apesar de suas incríveis vitórias, sinto em seus olhos que a dor do abuso psicológico sofrido no hospital ainda o acompanha. O pior da tortura é que não há reabilitação neurológica que a trate. Ressignificar tal sofrimento é muito complexo.

Na ânsia de pedir ajuda, tentava explicitar o que estava acontecendo nas minhas visitas, mas infelizmente as pessoas não acreditavam em mim por ter recém-saído de uma cirurgia cerebral. Ainda por cima, na época, não recebi muitas visitas porque acreditavam que iriam me preservar me afastando do olhar público, mas aconteceu exatamente o contrário. Como poucas pessoas me visitavam, demorou para perceberem que havia algo de errado. Só fui salva quando uma amiga e seu marido me visitaram e questionaram o excesso de machucados em meus braços, assim como os princípios de escaras (feridas geradas por falta de mobilidade no corpo que rapidamente se transformam em dolorosas úlceras) no meu corpo. O médico intensivista foi chamado, e logo indagou o porquê desses comentários aos meus visitantes. Ao perceber, com certa surpresa que ambos era da área médica – especificamente médico neurologista e enfermeira intensivista, suas solicitações foram ouvidas e, finalmente, tive dias melhores.

Existe uma “aura de salvador” que paira sobre a equipe de saúde, mas passei a questioná-la fortemente depois da minha experiência. As pessoas que trabalham em hospitais são humanas, e assim como todos nós, podem ter instintos bondosos e maléficos. Há muitas desculpas a respeito desses cruéis comportamentos, dentre elas a baixa remuneração e extensa jornada de trabalho. Pois bem, como saí de casa muito cedo, enfrento várias jornadas de trabalho desde a minha adolescência. Já passei por desafios financeiros ao ponto de faltar comida e moradia. Em nenhum desses momentos, busquei humilhar o próximo para abrandar meu vazio. Graças a Deus, meu coração sempre foi nobre o bastante para banir tal hipótese. Isso me conforta.

Outro aspecto que passei a questionar foi a arrogância presente no excesso de falas técnicas. Um bom profissional (de qualquer área) sabe transmitir a complexidade de seu trabalho de forma acessível aos leigos no assunto. Quem fala muito e de modo complexo quer desesperadamente mostrar sua inteligência, mas acaba por transparecer a sua mediocridade. Se alguém insiste em falar sobre seu ofício de modo muito específico, ele não quer se fazer compreender, mas apenas aplausos. Nesses casos, recomendo desconfiar imediatamente de seu profissionalismo. A arrogância sempre está acompanhada da mediocridade.

Toda pessoa que está em UTI, ou somente hospitalizada, está vulnerável. O nosso corpo se transforma em uma massa em que estamos presos. Esta massa é transportada e mexida para lá e para cá por estranhos, e durante nossa consciência só temos como companhia o teto branco. Sem autonomia, ficamos à mercê de uma equipe multidisciplinar, de quem dependemos para respirar, nos limpar e nos alimentar. Nessas circunstâncias, nos sentimos imensamente frágeis e impotentes, com pensamentos terríveis em nossas cabeças. Tais sensações são permanentemente agravadas com a tortura física e psicológica proporcionada por quem justamente deveria nos cuidar e transmitir segurança. Até hoje quando acordo e percebo que ainda está de noite, imediatamente me certifico de que estou me mexendo, e mesmo diante da resposta positiva, sinto medo.

Não é comum que haja visitas às pessoas hospitalizadas. Aqui deixo o meu apelo: visite. É o momento em que elas mais precisam ter por perto quem as ame. Aproveite o momento de afeto e verifique se os acessos estão bem implantados, de como está a pele em volta, se há vermelhidão ou feridas nas orelhas, no cóccix, nos ombros e calcanhares. Ao mínimo sinal de reclamação do paciente, acredite nele. Questione, bata o pé, não se retraia pela presença do jaleco branco ou pelo custo da diária do serviço ofertado, já que a violência hospitalar acontece tanto em instituições públicas como privadas, o que comprova que não é uma questão monetária. Médicos não são deuses, eles não são onipresentes, tampouco oniscientes. Nesses casos, aumente a diversidade das visitas, avise todos os envolvidos! Em situações extremas, todos precisamos estar atentos. Não é um caso de urgência, mas de emergência.

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