A (má) sorte do “Neguinho” Creomar

Aos 20 anos, preso num contêiner, Creomar só foi levado ao hospital já agonizando

A má sorte do Neguinho talvez tenha começado assim que nasceu. Apesar de seus três irmãos terem sido nomeados com clássicos e sonoros nomes nos quais se destaca a letra “L” – Clodoaldo, Cleiton e Leonardo – o cartório de registro achou por bem grafar seu nome com “R”, atribuindo-lhe legalmente, desde o berço, a dislalia funcional tão típica das classes menos instruídas de nosso país. Por isso gostava, e até preferia, ser chamado de Neguinho.

A infância proporcionada pelos pais, se não era abastada, tampouco era carente de atenção e carinho. Assim, foi um grande azar que, ao entrar na adolescência, tivesse seu pai – Pedro pedreiro – assassinado. Ali, a vida mudou: a família entristeceu, empobreceu, e ele se viu desorientado. A mãe começou a trabalhar como zeladora, os irmãos mais velhos passaram a ajudar no sustento da família.

Solto, Neguinho passava mais tempo com os amigos do que em casa e, aos poucos, foi fazendo uma nova turma. Encarou como mais uma brincadeira de rua baforar aquele cachimbo improvisado que lhe tirava lágrimas dos olhos e deixava um gosto azedo na boca. Era ruim. Mas era bom. Uma vez passou mal. O médico disse que ele tinha muito açúcar e muito sal no sangue. Achou engraçado. Estava com 16 anos e deixou de estudar.

Para os familiares, apesar das “bobeiras”, Neguinho continuava sendo um garoto tranquilo e engraçado, querido pelos amigos. Por isso, assustou todo mundo quando em 5 de janeiro de 2020, foi preso em flagrante ao tentar praticar um furto numa farmácia. A família acudiu e ele conseguiu responder o processo em liberdade. Ninguém perguntou por que ele tinha tentado roubar. Livre, Neguinho continuou a sair com os amigos e, com eles, a baforar o cachimbo. Não achava mais ruim. Achava tão bom que sentia falta quando não tinha, muita falta.

Neguinho, agora definitivamente Creomar Vieira de Santana, 20 anos, foi novamente detido no dia 27 de abril de 2020 acusado de tentar roubar um celular em via pública, portando uma arma de brinquedo. No dia seguinte (28), o juiz que analisou o caso decretou a prisão preventiva de Creomar, mesmo sendo réu primário. Que azar! A Justiça não levou em consideração que o jovem era usuário de drogas e teria tentado o furto motivado pela dependência química. Afinal, pobre, negro, sem instrução, se chamando Creomar, com R, concluiu o juiz pela “indispensabilidade da segregação, como forma de acautelar a ordem pública”...

Negro e de família pobre, Creomar foi enviado para a Cadeia Pública de Curitiba no bairro CIC, onde ficou detido em um contêiner com mais 11 presos por cerca de uma semana. Mesmo em plena pandemia da Covid-19, nem o jovem nem os outros presos da cela passaram por testes para saber se estavam contaminados com o coronavírus. A medida era imprescindível para evitar que o vírus se propagasse entre os 11 mil presos no sistema penitenciário da região metropolitana de Curitiba.

Em seguida, Creomar foi transferido para a Casa de Custódia de Piraquara e colocado em outro contêiner, dividindo espaço com mais 15 pessoas. A CCP é reconhecida como uma das unidades prisionais com condições mais insalubres da região de Curitiba. Lá, cerca de mil homens, em média, ficam detidos em contêineres sem ventilação e sem direito a banho de sol, um direito determinado pela Lei de Execução Penal (n.º 7.210, de 11 de julho de 1984). É fácil encontrar casos de presos que ficam até 4 meses sem sair de uma cela como essas.

Pouco mais de duas semanas após a prisão, na sexta-feira, dia 15 de maio, a família recebeu um pedido de socorro do jovem. Pedindo perdão à mãe e aos irmãos, Creomar implorava que conseguissem um advogado, porque estava mal e sentia que se ficasse mais uma semana naquele local morreria. A família providenciou a contratação de um profissional, que preparava um pedido de relaxamento da prisão.

Após dias pedindo socorro e reclamando de dores no abdômen e no peito, sem se alimentar, Creomar foi levado para o Complexo Médico Penal, em Pinhais. Alojado em uma cela com mais 6 presos na galeria 3, o quadro de saúde do rapaz foi se agravando, até que, na segunda, 18 de maio, uma ambulância do SAMU foi chamada. Creomar sentia dores no peito e estava com dificuldade para respirar. Percebendo o quadro grave, os atendentes decidiram intubar imediatamente o rapaz e levá-lo para o Hospital Angelina Caron, em Campina Grande do Sul. Segundo dra. Patrícia, médica que o atendeu, o rapaz chegou quase morto ao hospital.

O filho de dona Rosalina não resistiu. Neguinho, alto, magro, morreu no dia 19 de maio, 21 dias depois de dar entrada no sistema penitenciário paranaense. Para a mãe, ele era apenas um menino que se envolveu com drogas, realidade nada incomum na população de jovens pobres deste país.

O corpo, em desacordo com a lei, não foi encaminhado ao Instituto Médico Legal e a Covid-19 foi descartada pelo hospital. A causa do óbito foi atestada como pneumonia bronco aspirativa e choque séptico. Mesmo assim, a família de Creomar teve apenas dez minutos para velar o corpo do garoto de 20 anos, que estava em um caixão lacrado. Eles tiveram de ficar a mais de um metro de distância da urna e não puderam acompanhar o sepultamento, mesmo apresentando plano funerário familiar.

Foi bobeira fumar aquele cachimbo pela primeira vez; foi idiotice deixar de estudar; foi burrice usar uma arma falsa e tentar furtar; foi triste ser considerado uma ameaça à sociedade e ser preso; foi cruel ser estigmatizado como um pária a quem não é dada oportunidade de tratamento da dependência química; foi trágico perder o pai aos 13 anos para a violência urbana; mas foi muito azar o cartorário registrar seu nome errado.


Creomar Vieira de Santana, possivelmente a primeira vítima da Covid-19 a morrer no sistema penitenciário paranaense, o Conselho da Comunidade – órgão de fiscalização dos direitos humanos na Execução Penal, não deixará que teu nome seja esquecido. Questionaremos a direção do CMP, o DEPEN estadual e o Departamento Penitenciário Nacional sobre os motivos que os levam, eles que detêm a custódia legal das pessoas privadas de liberdade, a considerar “casos graves” apenas o das pessoas agonizando.

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