Ressentimento, Holocausto e ciclos de intolerância

Que analogias podemos fazer sobre ressentimento e os atuais ciclos de intolerância?

Temos o costume de listar, dentre as características que levam ao enfraquecimento de valores democráticos e a ascensão de projetos totalitários, a palavra “ressentimento”. Lemos e ouvimos que o ressentimento concebido no rescaldo da Primeira Guerra Mundial – e estimulado durante os anos 1920 – seria um dos fatores que explicariam a chegada de Hitler ao poder na Alemanha e, consequentemente, a tragédia humana do Holocausto. Mas afinal, o que entendemos por “ressentimento”? Como se comporta um indivíduo “ressentido”? Que analogias podemos fazer sobre ressentimento e os atuais ciclos de intolerância?

Este abreviado artigo tem a pretensão de enumerar cinco características intrínsecas à noção de ressentimento, aproximando-as, de maneira responsável, do período nazista e dos difíceis dias de hoje. A falta de presunção e de conhecimento relativo à psicologia e à psicanálise obrigaram a buscar referências intelectuais capazes de decodificar esses pensamentos e trazê-los a um terreno mais confortável para este articulista, acostumado a lidar com as nuances históricas e pedagógicas do Holocausto. A principal delas é a renomada psicanalista, ensaísta e jornalista Maria Rita Kehl, tantas vezes premiada e autora do livro “Ressentimento”, publicado pela primeira vez em 2007. Este artigo foi possível ser escrito graças às suas reflexões e extraordinária capacidade de síntese.

Escolher um culpado

A atribuição da culpa é a primeira característica própria do ressentido. Em “Genealogia da Moral”, de 1887, Nietzsche já destacava a lógica desse sujeito: “eu sofro: alguém deve ser culpado por isso”. O filósofo alemão Max Scheler, que discutiu suas teorias, falou sobre o estado emocional do ressentido como um “autoenvenenamento psicológico” que, segundo Maria Rita Kehl, faz com que o indivíduo perca totalmente “o sentido dos valores e a força do juízo” e atribua ao outro a responsabilidade daquilo que lhe gera dor e sofrimento. “Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar”, destacou.

O ressentido não consegue lidar com sua mediocridade – e sua infelicidade – sem culpar o outro – foi assim durante a República de Weimar, é assim atualmente. O artifício de se livrar da responsabilidade é usado para que ele não tenha que analisar suas próprias escolhas e, eventualmente, se arrepender. Como ela destacou, “o arrependimento dói, mas pelo menos revela algum tipo de questionamento. O ressentido, ao contrário, não se arrepende nem se questiona. Ele não suporta essa condição – e para não ter de deparar com sua divisão subjetiva, o ressentido escolhe um culpado a quem atribuir seu infortúnio”.

Apesar de delicada, a analogia com uma doença também é usada para explicar o ressentimento e a obsessão em escolher culpados. O filósofo francês Gilles Deleuze destaca que as pessoas podem ser afetadas pela “doença do ressentimento” – que, como esmiuçado pelo jurista Roberto Romano da Silva, teriam seu ímpeto voltado não para a maldade, mas para a depreciação. O historiador Makchwell Coimbra fala de uma “doença voluntária” que destrói as pessoas. O próprio Nietzsche detecta o ressentimento como doença quando há uma disfunção entre a consciência e a memória.

Vingança imaginária

O ressentimento carrega sentimentos dúbios de ciúme, inveja, perversidade e sordidez. Visto por Nietzsche como uma força reativa, o ressentimento não canaliza os ódios para fora, e sim para dentro. Esta autodestruição seria o combustível para a segunda e terceira características do ressentido: o desejo de “vingança imaginária” e uma vitimização permanente. Por um lado, como explicou o historiador francês Marc Ferro, aquele que se vê como perseguido, ao triunfar, se converte em um vingativo perseguidor. É o que afirmou o ensaísta Elias Canetti ao realçar as hordas de fuga e de perseguição: atacam o “inimigo” e, em contexto invertido, se vitimizam sem pudor. Esse contexto fica evidente ao analisarmos as atuais dinâmicas das redes sociais. E mais: quem não conhece a reflexão de Paulo Freire sobre educação não-libertadora, em que o sonho do oprimido é ser o opressor?

O desejo de vingança é a maneira com que o ressentido busca materializar seu ódio e a sensação de que o outro é o responsável absoluto pelo seu fracasso. É o que apontou o filósofo Oswaldo Giacóia, ao acentuar uma “descarga internalizada de tônicos afetos vingativos, numa reação incendiária, que permanece em nível da imaginação, consumindo todos os afetos numa forma pervertida”. A reflexão do sociólogo Antonio Candido sobre o clássico “O Conde de Monte Cristo” também evidencia as ideias de ressentimento e de vingança em que vazam os conceitos de “inimigo a ser esmagado de todas as formas”. Segundo a psicanalista Maria Rita Kehl, o ressentimento é alimentado por “ruminações acusadoras e fantasias vingativas”.

Ressentimento tem tudo a ver com atribuição de culpa, vingança imaginária e constante, frustração absoluta e isenção de responsabilidade. Ele consome os indivíduos e tem o poder de ser compartilhado, consumando o ódio coletivo por meio de ações cada vez mais violentas e legitimadas, muitas vezes, por uma hostil “política do ressentimento” realçada em meio a ciclos de intolerância.

Política do ressentimento

O ódio alimentado por cidadãos que compartilham a sensação de dignidade afrontada, como destacou o historiador norte-americano Francis Fukuyama, é um importante fator unificador entre os ressentidos. Isso faz com que o rancor seja um agente mobilizador mais poderoso que o amor ou qualquer outro princípio. Com um olhar mais ampliado, o economista Dani Rodrik, professor em Harvard, tem alertado sobre o que chamou de “política do ressentimento”, fruto de um descuido de governos pelo mundo diante de desigualdades socioeconômicas e do combate ao que se condicionou chamar de “politicamente correto”. Essa política populista, que canaliza os ódios e retroalimenta o ressentimento coletivo, seria o grande motor de um sentimento de intolerância generalizado que se disfarça de conservadorismo.

Ministro da propaganda Joseph Goebbels anunciando um boicote contra estabelecimentos comerciais judaicos, 1933

Assim como no nazismo, considerando a escalada de governos de extrema-direita, essa comoção negativa gera uma instabilidade democrática causada pelo uso do próprio sistema para violar a si próprio e legitimar o ódio – casos do ressentimento contra direitos de minorias, políticas de justiça social, inclusão e pautas identitárias. Ele surge atualmente, por exemplo, em propostas que vão do estabelecimento do “dia do orgulho hétero” aos questionamentos sobre políticas de cotas. A habilidade em explorar esse sentimento vingativo também faz parte do modus operandi desses governantes, que os transformam em pautas numa relação narcisista que não tem relação com qualquer forma de sucesso.

É por isso que o ressentimento flerta constantemente com o fascismo – e, no caso do Holocausto, com o nazismo. Esta é a quarta característica em questão: o ressentimento impulsiona forças políticas violentas e reacionárias capazes de concentrar o medo, a insegurança, a intolerância e um profundo rancor disfarçados por um desejo de poder. O gosto amargo do fascismo é o ponto alto dos ciclos de intolerância.

Segurança identitária

A quinta e última característica se baseia na ideia de que o ressentimento é aflorado não no choque com grupos culturais exóticos, mas naqueles que possuem cada vez mais aspectos em comum. Trata-se de ódio, e não de desprezo. Ao contrário de identidades muito distantes, seria mais difícil tolerar coletividades com diferenças mais subjetivas, já que isso desafiaria uma certa “segurança identitária”. O ressentimento se destaca, portanto, em meio à busca de diferenças supostamente inconciliáveis entre grupos bastante similares.

É o que Freud propôs ao criar o conceito de “narcisismo das pequenas diferenças” para entender a crescente discriminação sofrida pelo povo judeu na Alemanha do entreguerras. Mais do que a noção de bode expiatório ou de justificativas econômicas, Freud detectou uma questão psicológica fundamental no avanço desse ressentimento – como destacado por Maria Rita Kehl: “o fato de que, culturalmente, os judeus tinham muito mais semelhanças do que diferenças com o povo alemão”.

O “narcisismo das pequenas diferenças” freudiano direciona o ódio para aquele que está próximo: o vizinho, o colega de trabalho, aquele que poderia ser “quase um de nós”. Assim, o ressentimento desponta a partir de períodos de prosperidade e de mobilidade social. Não era incomum, afinal, ouvirmos declarações ressentidas de que os aeroportos brasileiros haviam se transformado em rodoviárias e de que empregadas domésticas viajavam à Disney. Tais narrativas de falsa injustiça evidenciam a hostilidade em relação a grupos socioculturais que prosperam, crescem ou se fortalecem.

A habilidade em explorar o sintoma social do ressentimento é um dos pontos de contato entre as ascensões de projetos autoritários – seja o nazismo (definido pelo historiador Michel Gherman como uma expressão moral de ressentimento) ou qualquer outra experiência que se alimenta do ódio e materializa o ressentimento coletivo. Estamos num momento em que precisamos, o quanto antes, declinar desse ciclo de intolerância e retornar a patamares recentes aceitáveis em que os pilares democráticos estejam protegidos – incluindo o consenso da educação antifascista e dos direitos humanos como universais e inegociáveis. O ressentimento, o grande inimigo da alteridade e da empatia, é o maior dos obstáculos não apenas para este desafio, mas para amar o outro como a si mesmo.

Para saber mais:
“Ressentimento”, por Maria Rita Kehl
“O ressentimento chegou ao poder?”, por Maria Rita Kehl

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