“Primeiro o ser humano”: os 80 anos do resgate dos judeus da Dinamarca

Material lançado pelo Museu do Holocausto não apenas homenageia o esforço coletivo da Dinamarca em nome da empatia e da alteridade. Ele também demonstra que, mesmo um mundo em completo colapso moral, sempre há opções de escolha

Eternizada por William Shakespeare na tragédia de Hamlet, escrita na virada do século XVI para o XVII, a frase “há algo podre no reino da Dinamarca” tornou-se uma alegoria para qualquer degradação política ou desfecho catastrófico, como um castelo de cartas prestes a desmoronar. Proferida pelo personagem Marcellus, a frase é um alerta ao próprio Hamlet para que ele percebesse o grande perigo em que se encontrava. No imaginário popular, ela carimbou a Dinamarca com uma alcunha negativa e uma estima duvidosa.

No entanto, a invasão da Alemanha nazista à Dinamarca, em 1940, mostrou, afinal, que “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. Ao contrário dessa podridão, sentimentos de benevolência e humanidade transbordaram a sociedade dinamarquesa. Como um plot twist de um filme hollywoodiano, uma mudança inesperada do enredo aos olhos do mundo, a perseguição, deportação e extermínio de judeus na Dinamarca durante o Holocausto falhou miseravelmente.

A história insólita desse povo milenar em terras dinamarquesas é sui generis, e o comportamento da população do país escandinavo foi único entre todos os países da Europa durante a Segunda Guerra Mundial – seja ele ocupado pelas forças nazistas, aliado ao Eixo ou neutro. Embora pequena demais para se defender militarmente, a Dinamarca avaliou suas opções de forma realista. No fim, nos ofereceu histórias sobre o instinto de sobrevivência, a desobediência civil e a assistência prestada por grande parte de um povo que, indignado, se rebelou contra a deportação de seus compatriotas.

Não foi a primeira vez que os dinamarqueses foram confrontados historicamente com desafios morais e éticos. Em 1864, depois de derrotada pelos prussianos, a Dinamarca foi assolada por um profundo mal-estar. Foi Nikolai Grundtvig (1782-1873), um poeta, educador, historiador e teólogo talentoso e versátil, que cultivou entre os dinamarqueses o espírito de democracia e humanidade por meio de escolas populares. “Primeiro o ser humano, depois o cristão: só esta é a ordem da vida”, escreveu. Menos de cem anos depois, o destino de pouco mais de sete mil judeus estava nas mãos de uma sociedade que não apenas os tolerava, mas que integrou a comunidade judaica e rechaçou o antissemitismo moderno em suas bases sociais. 

“Primeiro o ser humano”: os 80 anos do resgate dos judeus da Dinamarca é um material lançado no fim de setembro pelo Museu do Holocausto de Curitiba que não apenas homenageia o esforço coletivo dessa nação (e de sua resistência, seu underground, a Den danske modstandsbevægelse) em nome da empatia e da alteridade. Ele também demonstra que, mesmo um mundo em completo colapso moral, sempre há opções de escolha. Seria impossível, ao tratar de um genocídio extremo como o Holocausto, focar apenas no horror e no egoísmo e descartar histórias extraordinárias como a da sociedade dinamarquesa, que escolheu agir a partir de valores incompatíveis com a iniquidade e a injustiça.

O material

Graças ao esforço dos departamentos de História, Educação e do recém-criado Relações Internacionais, o Museu do Holocausto de Curitiba segue a linha de projetos pedagógicos anteriores e apresenta um material robusto, de linguagem acessível, gratuito e pronto para ser utilizado em sala de aula. Numa parceria com o Dansk Jødisk Museum (Museu Judaico Dinamarquês), em Copenhague, os textos apresentam o contexto histórico, destacam testemunhos em primeira pessoa e histórias de vítimas sobreviventes (inclusive relacionadas ao Brasil), oferecem recursos pedagógicos para educadores e fazem reflexões sobre a singularidade desse caso e suas implicações nos dias de hoje.

Destaque para a trajetória da judia alemã Eva Bonfil, que chegou recém-nascida a Dinamarca. O pai Karol e o avô Jakob, por serem de origem polonesa, haviam sido expulsos da Alemanha para Zbanszyn, cidade na fronteira entre Alemanha e Polônia. Quando, em outubro de 1943, os nazistas iniciaram as buscas para deportar os judeus da Dinamarca, Eva e sua família foram escondidos numa igreja. Ela se recorda do medo durante a madrugada e do padre que os abrigava e a acalmava, dando-lhe pedaços de chocolate. Em um pequeno navio de pesca, foram levados até Malmö, na Suécia, onde permaneceram até o fim da guerra. Depois, Eva chegou ao Brasil e, na década de 1960, mudou-se para Israel, onde vive até hoje com a família.

O que muitos sobreviventes descreveram como o “milagre dos resgates” foi um ato coletivo de bravura, coragem e solidariedade. Ao contrário de outras partes da Europa, em que observadores comumente se tornaram perpetradores e colaboradores dos nazistas, o questionamento sobre o que a população poderia ter feito deu lugar, na Dinamarca, a outra pergunta: “como poderíamos deixar de ter feito?” No dilema sobre “ser ou não ser, eis a questão”, transformado em questionamento existencial da nossa geração, grande parte do povo dinamarquês optou por “ser”, agir e se posicionar.

A operação de resgate dos judeus da Dinamarca, evacuados por barcos pesqueiros através de um estreito para a segurança na neutra Suécia, materializa uma resposta à dúvida de Hamlet sobre o existir e sobre como viver com integridade. Serve de exemplo para questões que, até hoje, a humanidade ainda pode e precisa se debruçar. 

Veja todo o material aqui.

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