Ano novo e memória do Holocausto: uma reflexão judaica sobre responsabilidade social

A palavra “responsabilidade” permeia qualquer iniciativa educativa que lide com o genocídio cometido pelos nazistas e seus colaboradores

Anos atrás, dentre as centenas de estudantes que visitam semanalmente o Museu do Holocausto de Curitiba, um deles marcou a existência da instituição. Pena que nunca soube seu nome, mas o telefonema da saudosa professora Heidi no dia seguinte nos presentou com a certeza da experiência transformadora que o Museu proporciona. Ao entrar no ônibus para retornar à escola, o aluno do 9º ano de uma escola estadual em Curitiba disse: “depois dessa visita, percebi como somos responsáveis por todos à nossa volta”. Missão cumprida.

A palavra “responsabilidade” permeia qualquer iniciativa educativa que lide com o genocídio cometido pelos nazistas e seus colaboradores. Também pudera: a responsabilidade social remete a comportamentos, posturas e ações voltadas ao bem-estar do nosso entorno. Em outras palavras, ele emerge da empatia e do sujeito empático. Não apenas porque nossas atitudes influenciam aqueles que vivem ao nosso redor, mas porque essa é (ou deveria ser) uma premissa da vida em sociedade. Como destacou o sociólogo Zygmunt Bauman, somos sim responsáveis uns pelos outros – e esta foi, inclusive, uma das lições que nos deixou a pandemia de Covid-19.

Esta coluna está sendo escrito nos dias anteriores ao Rosh Hashaná, o ano novo judaico – e também o Dia do Julgamento, quando Deus determina o destino de cada um para o ano que se inicia. Rosh Hashaná marca também a data em que Deus criou o primeiro ser humano. Como a ideia de zelar e arcar com as consequências do comportamento de outras pessoas se conecta tanto com o ano novo quanto com a educação sobre o Holocausto? Por que a transmissão das lições dessa tragédia humana inclui a noção de responsabilidade? E o que o Rosh Hashaná pode contribuir nesse processo?

Bystanders e a responsabilidade dos observadores

Nas ações educativas sobre o Holocausto, a noção de responsabilidade emerge principalmente quando nos atemos não apenas às vítimas e muito menos aos perpetradores, e sim aos observadores, espectadores ou testemunhas, chamados de bystanders – categoria estabelecida pelo historiador canadense Michael Marrus e incorporada por seu célebre colega austríaco Raul Hilberg na obra clássica Perpetrators, Victims, Bystanders. Falar sobre aqueles que “observaram” o processo do genocídio in loco (a maioria da população na Europa) pressupõe uma mescla entre cumplicidade e envolvimentos ativo e passivo, institucionais e pessoais, abertos e obscuros, positivos e negativos. Como destacado pela diretora do Programa de Ética, Religião e Holocausto do United States Holocaust Memorial Museum em Washington, Victoria Barnett, “um observador pode ser um burocrata alemão, um polonês aldeão ou um diplomata britânico”.

As poucas histórias que trazem o autossacrifício, o altruísmo e a dedicação em cuidar do outro vêm sempre acompanhadas de narrativas sombrias: seja dos impassíveis ou daqueles que se deixaram levar pela chantagem, pela vileza, pela crueldade ou pela insensibilidade. Em um mundo em completo colapso moral, uma pequena minoria reuniu coragem extraordinária para defender os valores humanos. Estes foram os “Justos entre as Nações”.

Ao contrário da tendência geral e ao compreender a fundo a noção de responsabilidade, esses salvadores consideravam as vítimas como seres humanos, e suas ações faziam parte de uma obrigação ética. Quando o natural seria fugir das chamas, arriscaram suas vidas e a de seus próximos em nome de princípios maiores do que manter a própria vida. Os “Justos entre as Nações” são os mais puros exemplos de responsabilidade de um ser humano perante outro. Eles entenderam que, apesar da indiferença e da falta de solidariedade que permeiam nossos dias, somos todos capazes de escolher cuidar de nossos irmãos.

Um microcosmo do universo

A tradição judaica e o conjunto de interpretações do Velho Testamento apontam que uma das razões para que Deus criasse apenas um homem e uma mulher foi ensinar que cada um de nós é um microcosmo do universo. Significa que carregamos individualmente a missão dada às duas primeiras criaturas humanas na Terra. E se não a cumprirmos, a falha não será individual, ela afetará o convívio e o destino do mundo inteiro. Ou seja, cada um tem sobre si a responsabilidade pelo resto do mundo.
A ideia de responsabilidade está relacionada a um sentimento de pertencimento, de compromisso e de cuidado em relação às comunidades em que fazemos parte. Em Rosh Hashaná, para que sejamos julgados por Deus, refletimos sobre o que fizemos com nossas vidas e atuamos para expiar nossos erros, lembrando que estamos todos imersos na mesma travessia humana. Por isso, não estamos nesse mundo somente para iluminarmos nossas próprias vidas: existe uma responsabilidade coletiva a ser exercida.

Sem um senso de responsabilidade coletiva voltado profundamente para o bem comum, a sociedade começa a se romper. A responsabilidade extrapola a premissa judaica de “não faças aos outros o que não desejas que façam a ti”. Ela pressupõe, como destacado pelo falecido rabino Sir Jonathan Sacks, uma ética própria, a “ética da responsabilidade”.

A magia da palavra hebraica para “responsabilidade”

A palavra hebraica para “responsabilidade” (achraiut, lê-se “arr-raiút”) é composta por várias palavras. É possível desmembrá-la letra a letra, sílaba a sílaba, formando novas palavras que se conectam, uma a uma, à noção geral de responsabilidade. Expliquemos.

A primeira letra de achraiut é a letra א (álef), a primeira do alfabeto hebraico – e que possui importante simbolismo. Ela se relaciona com a primeira pessoa de nossa lista de prioridades, que deve ser nós mesmos. Em hebraico, “eu” se diz “aní” – e não é coincidência que a primeira letra desta palavra seja o álef. Significa que, em primeiro lugar, precisamos de amor e de zelo próprios, ou seja, antes de cuidarmos e nos responsabilizarmos pelos outros, precisamos cuidar de nós mesmos. Não se trata de egoísmo, e sim de alcance.

Logo depois, temos a letra ח (chet, lê-se “rrêt”). Juntas, formam a palavra ách (lê-se “árr”): irmão, em hebraico. Significa que, após cuidarmos de nós mesmos, nosso olhar deve voltar-se àqueles mais próximos: nossa família. Pode ser que nem tenhamos um irmão, não importa. O ách, nesse caso, simboliza aqueles que convivem ao nosso lado.

A terceira letra de achraiut é a letra ר (rêsh), formando a palavra achêr (lê-se “arrêr”) e com um significado sugestivo: “outro”. Começamos, assim, a entender melhor a lógica da palavra “responsabilidade”: tudo se inicia com nós mesmos, até que o nosso olhar se volta aos mais próximos, depois ao “outro”.

Partimos para mais uma letra, o י (yúd). Neste caso, forma-se a palavra achrêi (lê-se “arrrêi”), que significa “depois”. A lógica segue a mesma: eu, família, o outro e “depois”, aquele que não posso ver, que está longe ou “atrás” de mim. Em hebraico, quase com as mesmas letras, escrevemos as palavras achor (lê-se “arrór”, costas) e meachor (lê-se “mearrór”, atrás). Na gramática hebraica, normalmente, ao acrescentar a letra yúd ao fim das palavras masculinas, nos referimos a nós mesmos. Meachorai (lê-se “mearrorái”) significa atrás de mim. Com esta afeição em relação ao outro, desenvolvemos um valor importante: a alteridade. Mais que um conceito, alteridade é uma evolução da ideia de empatia.

A última letra para juntarmos é o ו (vav). Quando formamos a palavra, temos acharáv (lê-se “arraráv”), que significa “seguido por”. Na mesma gramática, normalmente, ao acrescentar a letra vav ao fim das palavras masculinas, nos referimos a “ele” – ou seja, outra pessoa. Seria, portanto, o último da lista do nosso alcance. Depois de tudo, por último, falta apenas a letra tav para formar a palavra completa: achraiut, responsabilidade.

A magia da palavra hebraica para “responsabilidade” envolve uma concepção que se assemelha às ações dos “Justos entre as Nações”, observadores que se tornaram salvadores de vítimas do Holocausto. O início desse novo ano, 5783 para a tradição judaica, é mais uma oportunidade para destacar valores que são exercitados pelo Museu do Holocausto de Curitiba nos 365 dias do ano: a responsabilidade social. Shaná Tová, um feliz e doce ano para todos e todas.

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