O senhor do tempo

De acordo com os cientistas, tempo e espaço são relativos, praticamente ilusões da nossa mente. Alguns têm a ilusão de controlá-los por meio da memória. Mas, o que acontece com o tempo quando ela vai para o espaço? Viajamos no tempo ou nos perdemos nele?

Tenho problemas de memória desde o meu acidente. Em um nível assustador, até mesmo para os neurologistas. Para lidar com esta sequela faço exercícios de memória várias vezes ao dia, todos os dias. Tenho muito medo de regredir ao nível em que acordei do coma (quando confundia o meu próprio nome). Tenho a hipótese de que minha memória escapou do consciente para o pré-consciente, e com os exercícios para resgatá-la, me vêm flashes lúcidos de momentos aparentemente sem importância que havia esquecido. Tenho a impressão de que foi ontem, mas foi muito tempo atrás. Um dia desses acordei com a lembrança de um primeiro dia de aula.

Estou com a camiseta de um uniforme azul e branco indo para uma sala de aula no primeiro andar. Sento-me em uma cadeira e, atrás de mim, um garoto com uns quinze anos se apresentou. Seu nome é Ícaro. Pergunto se é por causa do mito de Ícaro que queria alcançar o sol, e ele responde que sim, mas que, por ironia do destino, tem medo de altura. Ao nosso lado senta-se uma garota sorridente que se apresenta como Juliana. Acho bonita a calça jeans dela. A lembrança é vívida, mas provavelmente ocorreu no início dos anos 2000, quando eu ainda morava em Campo Grande (MS). Não me tornei próxima de nenhum dos dois, nem sei como eles estão agora. Mas acordei com a sensação de que os conheci ontem. Coisa de cérebro machucado, especificamente da minha sequela cognitiva.

Cada lesão cerebral é única, por isso, cada sobrevivente tem sequelas diferentes. Somos iguais no medo, na sensação de incapacidade e nas dores de ter um cérebro incompleto, mas em tipos de sequelas, cada um tem a sua, dependendo do local e da extensão da lesão. Eu, por exemplo, não tenho muitas sequelas motoras, o que faz até que muitas pessoas achem que estou mentindo quando digo que tive três AVCs. Sim, risinhos de incredulidade fazem parte da minha rotina. Entretanto, cognitivamente meu cérebro foi estraçalhado, o que me causa devaneios de tempo e espaço como os que foram descritos. Eles parecem sutis e até mesmo dóceis e engraçados, assim como a incapacidade de reconhecer objetos e pessoas. Mas não se engane, tudo isso representa aspectos de uma sequela muito sombria: a perda da memória.

Basicamente, a causa que impactou tais ocorrências foram a série de vasoespasmos que causaram a restrição do fluxo sanguíneo da artéria média do meu hemisfério direito. Isso criou uma lesão vertical na minha cabeça, atingindo em cheio a minha capacidade cognitiva. Este é o motivo dos devaneios, das convulsões, da falta de senso de realidade e da perda maciça de memória, que originou um prognóstico que se transformou no meu maior medo: a demência precoce.

Sim, há um sério risco desta pessoa que vos escreve perder toda a informação descrita nessas linhas, e infelizmente, sei como será o início disso, porque já o vivi durante a UTI e nos meus primeiros meses após o acidente. Absorta em minhas lembranças, vago em minhas memórias, poucas vezes lúcida e muitas vezes lúdica. Perco-me em minha personalidade e me encontro em outras, misturo-me em vidas como um ator que troca de personagem. Presencio pesadelos e sonhos no mesmo dia, me torno altamente influenciável e meus valores se distorcem facilmente. Uma obra completa para perder amigos e me tornar completamente amoral, exatamente o inverso de uma das minhas maiores virtudes.

Uma das piores dores de passar por um AVC é porque ele nos tira o que mais temos. Ele deixa atletas sem andar, músicos e professores sem falar, faz surfistas perderem o equilíbrio, donas de casas terem seus casamentos dissolvidos e a guarda de seus filhos retirada. O AVC tira a liberdade de quem gosta de viajar, torna incapacitado o mais independente e transforma cientistas e escritores em pacientes de Alzheimer, aquele alemão que ninguém deseja ter ao lado. Meu colega Ícaro, sempre presente em minha lembrança, apesar da pouca idade, tinha razão: o destino é realmente muito irônico.

Parece que a lesão atinge a parte que a gente mais usa no cérebro, por chacota do senhor do tempo ou pela repescagem da vida. Por isso, quando falamos de resiliência pós AVC, estamos vivendo na prática o que muitos falam e escrevem apenas para se vangloriar. Mas será que viver isso diariamente seria tão glorioso? O que você seria se perdesse a característica que mais te define? Como começaria do zero se esse número não existisse mais, se fosse diluído no tempo, assim como um punhado de café em um oceano? Como controlar a vida sem estratégia, sem tempo, sem espaço e sozinho? Seja bem-vindo à nossa vida como ela é, sem grandes bilheterias.

É por essas e outras que acredito que, quem não tem uma lesão cerebral (os seres de miolos cheios), não tem ideia do que é viver com a limitação de seu próprio corpo e consciência, e até acho que, por uma certa inveja, nos julgam tanto. Para eles, somos a representação de seus maiores medos: continuar vivendo depois que todas as estruturas sucumbiram, ou citando Berman: quando tudo que é sólido se desmancha no ar.

Comecei a aceitar mais o meu prognóstico e o fato de ter tido AVC tão jovem ao perceber que todo mundo está meio inseguro e perdido nessa vida. As dores e incertezas são intermináveis e as pessoas insistem em fazer perguntas sobre as quais não querem saber as respostas. Quem sou eu? Como será o meu fim? Qual é o sentido de tudo isso?

Nós, AVCistas, também somos bombardeados por tais perguntas, e temos, sim, algumas respostas. Infelizmente. Quem gostaria de saber que sua identidade não está exatamente relacionada ao que você gosta, trabalha ou fala? Quem se atreveria a saber que terá seus últimos dias absorto em seus pensamentos em uma casa de repouso, sendo cuidado por estranhos (Blanche Dubois que me perdoe, mas nunca fui muito fã de sua história). E ainda tem o pior: que não há exatamente um sentido na vida, nossos destinos são apenas frutos da diversidade.

Há escolhas, sim, mas a decisão é mais intuitiva do que racional. Não há como parar ou adiantar o tempo, apenas dançar com ele. Não se trata de entender como tudo funciona, mas aproveitar as oportunidades. Aí está a grande dureza! Atravessar portas abertas exige a coragem de enfrentar o pavor de saber que elas existem. É muito mais fácil choramingar pelo passado do que guiar o próprio presente. E o próprio senhor do tempo continua aproveitando as paisagens e assistindo histórias grandiosas realizadas em um curto período, assim como filmes longuíssimos com pouco enredo. Não existe parcimônia para o dono da ampulheta de areia, acredito até que ele tenha certo orgulho de ser desequilibrado.

Todos nós, sobreviventes de AVC, independentemente de currículos e graduações (acredite, tudo isso é apenas papel), somos um pouco sábios porque nos encontramos com a morte, e ao lado dela, conhecemos Cronos, o seu fiel companheiro que gosta de morder os mais desavisados. Ele cheirou a nossa mão e simplesmente foi embora, sem nenhuma razão plausível (nenhum de nós sabe o porquê de ainda estar vivo).

Quem sobrevive a um AVC ganha a capacidade de ter duas vidas: uma é a passada (aquilo que achávamos que éramos) enquanto a outra é o presente (lidarmos com a incerteza de quem somos). O futuro nos foi dado de brinde e, aos trancos e barrancos, estamos fazendo tudo que podemos, assim como todo mundo. Apenas temos um pouco mais de consciência disso. Se toda essa conversa bugou a sua cabeça, não se sinta mal, tamanha complexidade não é mesmo tão fácil de compreender. Tamanha filosofia não é para qualquer cabeça.

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