Cálice

Sobreviver a um AVC é estranho. Você está igual, mas não está. O mundo está igual, porém completamente diferente. Quando sofremos uma lesão cerebral nos tornamos pessoas com deficiência, só que nem todas as lesões são aparentes (como as cognitivas e as sensoriais, por exemplo)

Sobreviver a um AVC é se mudar para um outro universo. Você vai para um lugar aonde ninguém quer ir e muito menos saber a respeito. Mas é a nossa vida, e temos direito de falar dela sem sermos taxados de vitimistas. Sabe de uma coisa? Chega de nos manterem calados.

Ei, você. Venha cá. Precisamos ter uma conversa séria. Desde uns tempos para cá, os seus assuntos estão sendo muito repetitivos, e você se tornou uma pessoa meio chata, enfadonha. Tem como de hoje em diante, você não falar mais das coisas da sua vida (do seu dia a dia, das suas aflições e de seus planos para o futuro) e só me escutar? Ou ficar quieto e aproveitar o incrível fato de estar vivo? Caso isto não aconteça, já te aviso, vou ter que me afastar por algum tempo. Não sei se você reparou, mas muitas pessoas já fizeram isso. A causa é justamente essa sua nova mania de dizer sempre a mesma coisa. Agora que já falamos abertamente, que tal um cálice… de vinho?

Talvez na sociedade em geral, a narrativa do parágrafo anterior seja estranha e hostil. Mas, infelizmente, mesmo tendo inúmeras adaptações, ela é muito ouvida por sobreviventes de AVC, principalmente no primeiro ano após sofrerem o acidente. Isto porque a gente fala muito de AVC, especificamente do nosso, e constantemente somos reprendidos por isso, uma censura que nos causa muita dor e aumenta a sensação de solidão.

Há muitos motivos para a gente só falar de AVC, e antes que me pergunte se não há outro assunto, já respondo: não. Bem que a gente gostaria de esquecer o AVC por algumas horas, ou alguns minutos, mas não dá. Desde que abrimos os olhos e nos deparamos com um novo corpo, lembramos que passamos por um AVC; quando nos levantamos para uma nova rotina, um novo dia e constatamos que ela não é mais a mesma, lembramos dele. Nas nossas pequenas vitórias; quando reconquistamos algum novo movimento, logo depois vem a lembrança de que agora estamos assim por causa do… Você sabe o quê. E até mesmo num passeio, numa compra de um simples casaco, quando estamos o experimentando e o tecido trava no braço imobilizado… Adivinha o que vem na nossa cabeça? Exato! A gente lembra que teve um AVC. Caso você conviva com algum AVCista e está cansado de tanto ouvir ele falar essas três letras, acredite: ele também está farto delas. Porém, ele precisa urgentemente falar sobre o assunto. É uma questão de vida ou morte, e calar-se pode se tornar um cálice…de cicuta.

Sobreviver a um AVC é estranho. Você está igual, mas não está. O mundo está igual, porém completamente diferente. Quando sofremos uma lesão cerebral nos tornamos pessoas com deficiência, só que nem todas as lesões são aparentes (como as cognitivas e as sensoriais, por exemplo). À primeira vista, isso pode parecer vantajoso, mas na prática é uma verdadeira incógnita. O corpo se torna frágil e vulnerável em partes em que ninguém pode ver, e somente poderão ser descobertas e tratadas a partir da percepção do paciente, que, por se encontrar com o cérebro lesionado, está confuso. E só nos damos conta desses percalços recorrentes conversando com quem confiamos. Precisamos nos abrir com quem amamos para entender o que está acontecendo e porque precisamos nos acalmar; estamos desesperados.

Para os sobreviventes afásicos (cuja lesão cerebral os impede literalmente de se expressar por meio da fala ou da escrita), o drama é ainda mais devastador. Muitas vezes, em sua recuperação silábica, a única palavra que consegue definir vários âmbitos de sua realidade se resume precisamente nessas três letrinhas que mudam tanto as nossas vidas. Há casos em que esta é a única palavra que sai das cordas vocais e é compreensível, tendo em vista que são letras bem definidas. Desde que iniciei o canal, recebo mensagens de voz ou de texto com apenas “AVC”, e entendo que é um sobrevivente afásico que está iniciando a conversa. Sei muito bem o peso dessas três letras e a imensidão que, juntas, elas representam. Todavia, também sei que a sociedade em geral não compreende isso e julga os afásicos com a mesma crueldade que os outros sobreviventes, preferindo os isolar do que apoiá-los e reinseri-los em seus meios. Todos somos descartados da convivência como cálices de… Plástico.

Principalmente nos primeiros meses pós-acidente, o neurologista tenta descobrir as principais sequelas do AVC nos poucos minutos de uma consulta. Nesse tempo cronometrado, precisamos ser claros e dizer exatamente os problemas que estamos passando para que o médico entenda a progressão do machucado cerebral. A sensação é pior do que de prova final, pois qualquer erro pode colocar o acompanhamento em risco.

No meu caso, tive muita ajuda de um amigo médico que fez questão de se mudar para minha casa durante o período de uma semana para me acompanhar diariamente e ouvir todas as minhas percepções. Foi ele que descobriu as minhas falhas visuais e cognitivas, algo que naquela época nunca conseguiria identificar sozinha, e anotou todas elas em um bloquinho que eu levava para o neurologista. Ele se aproximou de mim numa época em que muitas pessoas já haviam se afastado, tanto por minhas crises emocionais como por eu estar “chata” por apenas falar de AVC.

Hoje, que tenho contato com muitos outros sobreviventes, vejo que a minha solidão pós-acidente ainda foi moderada, já que nem todos foram embora da minha vida. Não é o acontece com muitas pessoas. Há, inclusive, muitos rompimentos de namoros, noivados e casamentos poucos meses após a pessoa sobreviver a um acidente vascular cerebral. A desculpa é sempre a mesma: nosso papo insistente. (E talvez por isso, esse lance de falar abertamente sobre o próprio AVC ainda é visto com muita mágoa em nossa comunidade). Porém, sinceramente, acho que o motivo é mais além: não há força ou sentimento o suficiente para oferecer suporte à pessoa necessitada. Na falta de coragem para esclarecer esse fato, perpetua-se o silêncio e culpa-se a vítima. Para aguentar o tranco, resta apenas tomar vários cálices de… Água salgada.

No meio desse dia a dia tão hostil, os silenciados AVCistas se encontram em grupos de apoio, um ambiente virtual diferenciado onde, ao contrário do resto mundo, falar de AVC é estimulado. Lá amizades são feitas, e por meio de trocas de experiências, muito se aprende, muito se conforta. Com o tempo, os laços são estreitados e um outro fenômeno acontece naturalmente: passamos a falar de outros assuntos, muito além do AVC.

Como seres humanos, somos um universo de conteúdos, talvez essa seja uma das nossas grandes capacidades. Só que todas essas só poderão se sobrepor à dor de um trauma, se ele puder ser trabalhado com afeto e reciprocidade, e não brutalmente censurado. Expressar-se é essencial para o cérebro, já que este órgão trabalha com razão e emoção ao mesmo tempo. Por meio do diálogo, nossas lutas cotidianas se tornam mais leves e o cálice, ou melhor: o calar-se, finalmente é quebrado, tornando a nova vida pós-AVC mais viável.

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