Rosas ao mar não cessarão o genocídio palestino

Bastaria a ofensiva em curso desde outubro do ano passado para enquadrar o Estado de Israel e seu governo de extrema-direita no crime de genocídio.

Há uma cena em “Aniquilar”, romance do francês Michel Houellebecq, em que dezenas de lideranças de vários países, além do papa, se encontram em um porta-aviões para homenagearem as vítimas de um ataque terrorista que naufragou um navio com cerca de 500 refugiados. A cerimônia se passa no Mediterrâneo, lugar do naufrágio, e os presentes, consternados, lançam rosas ao mar em memória às cinco centenas de vítimas.

Lembro da cena quando leio que a Corte Internacional de Justiça da ONU – mais conhecida como Tribunal de Haia –, no final de um interminável janeiro, decidiu que o Estado de Israel deve limitar os ataques à Faixa de Gaza, garantir o acesso de palestinos aos serviços básicos e à assistência humanitária e evitar a destruição de casas e infraestrutura civil.

As medidas foram uma resposta do Tribunal à acusação da África do Sul de que está em curso um genocídio contra o povo palestino, especialmente, mas não exclusivamente, na Faixa de Gaza. Entre as medidas demandadas pelos representantes sul-africanos, com apoio, entre outros, do governo brasileiro, estava o imediato cessar-fogo, solenemente ignorado pela Corte Internacional.

Sobre, especificamente, a acusação de genocídio, a decisão não poderia ser mais torpe e cínica. O Estado de Israel deve tomar as medidas necessárias para evitar atos que podem ser considerados genocídio.

Na prática, um puxão de orelha, sem maiores consequências, apesar do oba-oba dos jornalões brasileiros e seus comentaristas, que consideraram a decisão um “marco histórico”, mas que mantém intocada a sanha genocida de Benjamin Netanyahu e da extrema-direita de Israel. Sobre o processo em Haia, Netanyahu afirmou que seguirá com a guerra “até a vitória final” e classificou a acusação sul-africana de “antissemita”.

Nesse sentido, merece menção a sinceridade da analista internacional Natalie Rosen que, em entrevista ao portal “Poder360”, admitiu que a decisão fortalece Israel, pois reconhece seu “direito à legítima defesa”. E que talvez, talvez, o Estado israelense tenha cometido um ou outro crime de guerra, o que ainda precisa ser provado, já que baixas civis podem ser justificadas no contexto de uma “guerra complexa”.

Cada autor e autora têm os leitores que escolhe e merece. Não é casual que os artigos de Rosen são admirados e sugeridos por gente da fibra moral de um Deltan Dallagnol.

Tragédia humanitária

Retomo, sucintamente, ao que diz o direito internacional sobre o tema. Aprovada em 1948 pela Assembleia Geral da ONU, a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio o define como um conjunto de ações cometidas com “a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

Entre eles, o assassinato e o atentado grave à integridade física e mental de um grupo, ou sua submissão deliberada a condições de existência que acarretarão, total ou parcialmente, sua destruição física. Foram esses três tópicos, de um total de cinco estabelecidos pela Convenção, os apontados pela África do Sul para pedir a condenação do Estado de Israel.

Apenas a ofensiva em curso desde outubro bastaria para enquadrar o Estado de Israel e seu governo de extrema-direita nos crimes relacionados pelas autoridades sul-africanas.

Já são 27 mil palestinos mortos, milhares deles crianças, centenas delas soterradas sob toneladas de escombros. Bairros e cidades inteiras de Gaza foram transformados em ruínas, incluindo mercados, escolas e hospitais. No final do ano passado, um comboio de ambulâncias e um campo de refugiados foram atacados por mísseis israelenses.

A tragédia humanitária não se limita, no entanto, às vítimas fatais do massacre. A crise é agravada pelas inúmeras manifestações, de autoridades inclusive, que desumanizam palestinas e palestinos; pelo uso de insumos básicos, como comida e água potável, como instrumento de guerra, privando a população das condições básicas para sua sobrevivência física; pelas prisões ilegais e as inúmeras denúncias de tortura.

Além de uma geração inteira – mais uma – de crianças palestinas que crescerão órfãs, traumatizadas e irremediavelmente mutiladas, física e psicologicamente, pela violência de um conflito que não é uma guerra, nunca foi, mas uma ocupação colonialista que há décadas impõem um apartheid sobre o território palestino.

Nesse sentido, é simbólico que a resposta da Corte de Haia às acusações da África do Sul contra Israel coincida com o início do ano em que o fim de outro apartheid, o sul-africano, também ele negligenciado e tolerado pelas potências Ocidentais, completa três décadas.

Prática social e extermínio

Não estamos falando, portanto, de alvos militares e de terroristas. Tampouco do direito de defesa. Mas de uma política sistemática de extermínio, uma limpeza étnica justificada com uma mentira, a de que o Estado de Israel se defende de uma ameaça terrorista, e uma falácia, a de que toda crítica à violência genocida de Israel é antissemita.

Com a conivência, é preciso insistir nisso, das assim chamadas “democracias liberais”, notadamente, mas não exclusivamente, os EUA. A cumplicidade do Ocidente e suas democracias com o autoritarismo e a violência, aliás, não é nova. Os judeus, inclusive, são testemunhas disso.

Se, hoje, o Estado de Israel pode agir sob o manto da certeza da impunidade, o avanço nazista, ainda nos anos de 1930, foi possível, em parte, porque à época as democracias liberais fizeram vista grossa à ascensão do totalitarismo nazista, visto como um mal menor frente ao risco de um avanço comunista sobre a Europa. A perseguição e a morte de judeus, naquele contexto, era um dano colateral plenamente justificado pela “ideologia leiga” – a expressão é de Hannah Arendt – do antissemitismo moderno.

Ao propor analogias possíveis entre as políticas de extermínio do Estado nazista alemão, nos anos de 1930, e a “doutrina de Segurança Nacional” da última ditadura argentina, o sociólogo Daniel Feierstein argumenta que o genocídio deve ser entendido como uma “prática social”. Para ele, sua definição extrapola o aniquilamento físico baseado, por exemplo, em critérios étnicos, como no caso da Alemanha nazista.

Seu sentido, diz, reside na destruição e reorganização de relações sociais. Ou seja, além do aniquilamento físico, trata-se de uma “tecnologia de poder” que pretende, igualmente, extinguir a “identidade existencial” dos grupos vitimados.

Se prática social, ainda de acordo com Feierstein, o genocídio existe antes do extermínio e sobrevive a ele, produzindo, além de cadáveres, corpos desprovidos de direitos – inclusive ao luto – e dignidade, sujeitados a um consenso e a uma obediência imposta desde fora e de cima, pela força da violência e do medo.

Passados pouco mais de 100 dias desde o início da ofensiva israelense, e apesar de Haia, não há equívoco em se afirmar que está em curso um genocídio contra o povo palestino. E estamos assistindo a tudo nas nossas telas e redes sociais, horrorizados e impotentes, enquanto governantes, juízes e analistas internacionais lançam rosas ao mar.

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