A “guerra” é o colonialismo continuado por outros meios

Não estamos falando do direito à defesa. Mas de uma política sistemática de extermínio, uma limpeza étnica justificada com uma mentira e a conivência silenciosa das democracias liberais

São dois, principalmente, os argumentos brandidos pelo Estado de Israel e aquelas e aqueles que o apoiam incondicionalmente, aí incluso a extrema-direita brasileira e seu principal aliado internacional, o governo estadunidense.

O primeiro deles: o Hamas é um grupo terrorista cujo propósito, único, é o de destruir Israel. O segundo, diretamente advindo desse, é o de que Israel tem o direito – absoluto, segundo alguns – de se defender.

É verdade quase tudo o que se diz sobre o Hamas: trata-se de um grupo terrorista que afirma, sem meias palavras, seu desejo de varrer Israel do mapa. Objetivo, aliás, presente no estatuto da organização, de 1988, que sentencia, logo em seus primeiros parágrafos: “Israel existirá e continuará existindo até que o Islã o faça desaparecer”.

Mas, efetivamente, para além da aspiração, emoldurada em um discurso religioso fundamentalista e messiânico, do objetivo estatutariamente estabelecido, quais as condições, reais e factuais, do Hamas derrotar e extinguir Israel? Os longos anos de ocupação da Faixa de Gaza, principalmente, sugerem o contrário: se há, na região, algum risco de extinção, não é o de Israel.

Os ataques do Hamas no dia 7 de outubro mataram cerca de 1,5 mil israelenses, a maioria civil, vítimas da sequência coordenada de ataques do grupo que incluíram, além de bases militares, kibutzim e um festival de música. Há, ainda, 242 reféns em poder do Hamas, segundo autoridades israelenses.

Do lado palestino, já são aproximadamente 11 mil mortos. Cerca de 4 mil dessas vítimas são crianças, centenas delas soterradas sob toneladas de escombros. Bairros e cidades inteiras de Gaza foram transformadas em ruínas e as forças militares do Estado de Israel já destruíram um mercado e pelo menos um hospital. Nos últimos dias, um comboio de ambulâncias e um campo de refugiados também foram atacados por mísseis israelenses.

Não estamos falando, portanto, de alvos militares e de terroristas. Nem, tampouco, do direito de defesa. Mas de uma política sistemática de extermínio, uma limpeza étnica justificada com uma mentira – a de que o Estado de Israel se defende de uma ameaça terrorista –, com a conivência silenciosa das assim chamadas “democracias liberais”.

Entre os que condenam a violência do Estado de Israel contra o povo palestino, diz-se, com frequência, que Israel pratica um “terrorismo de Estado”. Há alguma razão nisso, mas minha intenção nos próximos parágrafos vai em outra direção.

Não estamos diante de um Estado terrorista – pelo menos não estamos mais. Trata-se, principalmente desde a ascensão da extrema-direita e de Benjamin Netanyahu ao poder, da continuação, por outros meios, de uma política expansionista de colonização, outrora basilar do processo de formação do que costumamos chamar de “Ocidente moderno”.

Mais acentuadamente no século XIX, a propalada superioridade racial do homem branco serviu amplamente ao colonialismo das potências europeias em praticamente todo o território africano. E assegurou um lastro de legitimidade, inclusive científica, às práticas de extermínio que foram a antessala do genocídio judeu perpetrado pelo nazismo.

Terrorismo e violência

A violência terrorista acompanha a história do Ocidente. Até recentemente, não era incomum assistirmos, nos telejornais noturnos, notícias sobre atentados e conflitos envolvendo o IRA e o ETA. Há elementos comuns a aproximar estes e outros grupos. Além de um sentido dramático e messiânico da história, o estado permanente de guerra, condição tida como necessária para seus objetivos.

Tratava-se, grosso modo, de responder a alguma situação política contraditória a seus propósitos, crenças e identidades, não raro uma mistura de ideologia, nacionalismo e, às vezes, também religião. O caráter espetacular das ações tinha o objetivo de compensar, pelo choque e a visibilidade, o alcance limitado delas.

Simplificando um pouco: na impossibilidade de levar adiante e concretizar propósitos mais ambiciosos, a violência, transformada em espetáculo midiático, cumpria um papel fundamental: levar a população vítima das ações terroristas a um estado permanente de tensão, insegurança e medo.

Aquelas e aqueles com idade suficiente para terem assistido, estupefatos, o atentado às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, sabem bem do que falo.

O Hamas se inscreve nesse contexto. Seu surgimento, há quase quatro décadas, acrescentou à resistência palestina contra a sempre crescente ocupação de seu território, o caráter messiânico de um discurso religioso fundamentalista e uma leitura ultraortodoxa do Alcorão, que busca estabelecer um Estado muçulmano nas terras habitadas por palestinos, incluindo o território israelense.

O terrorismo do Hamas é a resposta, brutal e violenta, à brutalidade e à violência em escala industrial de Israel. Como mencionei em coluna anterior publicada no Plural, não há guerra. Mas uma força de ocupação que reproduz as políticas de colonização do Ocidente da qual é, hoje, a principal herdeira e continuadora.

O atentado de outubro e a escalada de violência perpetrada por Netanyahu e seu governo como resposta, aumentam a instabilidade e podem resultar em um duplo fortalecimento: da opção pelo terror como única alternativa restante e possível à resistência, e do colonialismo genocida do Estado de Israel.

Vidas precárias

No primeiro caso, palestinas e palestinos não querem uma nova Nakba. E é crível supor que a legitimidade da ideia de uma resistência violenta cresça proporcionalmente ao estreitamento das garantias de que a tragédia não se repetirá, para o que contribui o rastro de destruição e os milhares de cadáveres produzidos pelas diárias investidas militares das forças israelenses contra Gaza.

Entre parte da população israelense, os ataques recentes do Hamas instalaram, mais que tensão e medo, um clima generalizado de desconfiança na capacidade de seu governo de defendê-los da ameaça vizinha. Especialmente para a parcela, bastante expressiva, que não viveu os horrores passados, como o Holocausto, e deles têm apenas a memória herdada e ensinada, a sensação de insegurança e fragilidade deve ser ainda maior.

É nela que o governo de Israel e seus aliados no Ocidente apostam.

Nela e no ódio crescente contra palestinas e palestinos, colocados todas e todos na vala comum do terrorismo, desumanizados e reduzidos a corpos desprovidos, sequer, do direito ao luto – ou a ratos, segundo a deputada Carla Zambelli, que mais uma vez escancarou as afinidades do bolsonarismo com seu antepassado mais ilustre.

Netanyahu disse à FoxNews que não pretende ocupar Gaza. Mas, convenhamos, nenhum deles goza de credibilidade. A extrema-direita israelense não tem interesse em negociar qualquer outra saída, porque tem, hoje, carta branca para prosseguir, sem freios, com a limpeza étnica da Faixa de Gaza e à ocupação plena do seu território.

Nem ela, nem as democracias liberais se importam com as vidas palestinas já perdidas e as que ainda serão ceifadas, porque elas valem, para o Ocidente, o que valiam as vidas africanas no século XIX: nada.

Confortável e seguramente instalado em seu gabinete em Tel Aviv, “Bibi”, um dos mais longevos governantes de Israel e cuja legitimidade, até o começo de outubro, vinha sendo questionada por setores do eleitorado, atentos e temerosos de suas aspirações e de seu projeto autoritário, esfrega as mãos de contentamento.

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