Algumas palavras sobre a Palestina

Não se pode esperar que um povo suporte anos de terror, encarceramento, violência e morte sem que, em algum momento, esses anos de sofrimento retornem, também, em forma de violência

No momento em que escrevo essa coluna, são quase três mil mortos desde que, na sexta (07), o grupo terrorista Hamas lançou, contra Israel, um ataque sem precedentes. “Desde o Holocausto nunca foram mortos tantos judeus num único dia”, afirmou em entrevista o presidente Isaac Herzog.

Apesar disso, sem surpresa, o número de vítimas do lado palestino já é maior que entre os israelenses. Uma assimetria que aumentará nos próximos dias, à medida que as forças militares de Israel, superiores em número, poderio bélico e aliados poderosos, seguem avançando sobre o território palestino.

Prenúncio de mais uma tragédia humanitária, na última sexta (13), o governo israelense comunicou à ONU que pretende invadir o Norte de Gaza, e deu aos mais de 1 milhão de palestinas e palestinos que ali vivem 24 horas para deixarem a região em direção ao Sul.

Após uma semana não há nada de novo a se falar a respeito. Mas sou beckettiano. As palavras a seguir, portanto, as falo sem o compromisso de dizer absolutamente nada de original, mas pela necessidade, ética, de não emudecer nem consentir diante do horror.

A permanência da “questão palestina”

Em 1992, no prefácio que escreveu à reedição de seu “A questão da Palestina”, o crítico e ativista palestino-estadunidense Edward Said, observou que entre aquele ano e 1977, quando iniciou a escrita do livro, seguiram-se inúmeros acontecimentos, dentro e fora do Oriente Médio – a invasão do Líbano por Israel, a Guerra do Golfo, a dissolução da União Soviética e a libertação de Mandela – que mudaram radicalmente o mundo. “No entanto, afirma, causando estranheza e infortúnio, a questão palestina persiste – sem solução, aparentemente irreconciliável, indomável”.

Há muitas razões a explicar essa incômoda permanência, a começar pela estreita aliança firmada entre Israel e as principais potências do Ocidente, notadamente os Estados Unidos. Aliança fundamental na manutenção do projeto de ocupação gradual, sistemática e violenta do território palestino pelo Estado de Israel, parte da pretensão israelense de um domínio não partilhável da terra.

Em muitos sentidos, essa aspiração é uma das causas da persistência da “questão palestina”, como já denunciava, em artigos publicados nos anos de 1940 e 1950, Hannah Arendt. Ela alertava, entre outras coisas, para os riscos de um Estado militarizado se o projeto de um domínio nacionalista e uma soberania absoluta persistissem. Os efeitos desse e de outros tantos alertas, incluindo o de muitos intelectuais judeus, foram nulos.

Ao longo de 75 anos, Israel ocupou territórios palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, instalando colonos israelenses em assentamentos subsidiados com recursos estatais e resguardados pelo poderio militar do país. A propalada solução de dois Estados nacionais como garantia para a paz, tornou-se praticamente inviável ante os mais de 650 mil colonos israelenses ilegalmente assentados em territórios palestinos.

A questão palestina, como Said anteviu, está longe de qualquer solução duradoura.

Não há uma guerra, mas ocupação militar

Não há uma guerra em curso. Israel é uma força de ocupação e a Faixa de Gaza, uma prisão a céu aberto, a maior do mundo. Palestinas e palestinos, incluindo crianças e idosos, vivem em um permanente e contínuo estado de exceção, refugiados em sua própria terra.

Ao longo de anos, o Estado israelense instalou postos de verificação, empreendeu sucessivos ataques militares em zonas civis densamente povoadas, matando milhares de palestinas e palestinos – apenas para os últimos 15 anos, os números oscilam entre sete e dez mil.

Além disso, destruiu parte expressiva das terras agrícolas de Gaza, bombardeou instalações de água, centrais elétricas, hospitais e escolas, fechou fronteiras e portos e, seguidamente, priva a população palestina mesmo do acesso a insumos básicos como água e medicamentos.

Diante das ameaças do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e do presidente Isaac Herzog de arrasarem a Faixa de Gaza, o jornalista israelense Gideon Levy escreveu, em artigo para o Haaretz, que “Gaza não deixou de ser punida por Israel desde 1948, nem por um momento”.

O silêncio das democracias liberais

Em setembro de 1993, mediados pelo governo estadunidense, Israel e a Organização para a Libertação da Palestina assinaram os chamados Acordos de Oslo nos jardins da Casa Branca. Pelos termos do tratado, cabia a Israel basicamente reconhecer a OLP como representante do povo palestino e retirar suas tropas de parte dos territórios ocupados.

Três décadas depois, não há um Estado palestino, tampouco paz. Milhares de palestinos e israelenses foram mortos; Gaza e Cisjordânia foram separadas politicamente; uma muralha de impressionantes 720 quilômetros de extensão foi construída por Israel, novamente invadindo territórios e isolando cerca de 450 mil palestinas e palestinos; e o número de colonos israelenses ilegalmente assentados cresceu de 250 para 600 mil.

A Autoridade Palestina, criada a partir do acordo, oficialmente, para governar setores como educação e saúde, mantém sua presença na Cisjordânia, após a derrota eleitoral para o Hamas em Gaza, em 2006. Mas não tem autonomia sobre as fronteiras, sob o comando de Israel, tampouco a confiança de parte expressiva da população, que a considera um agente do governo israelense.

À época, o já mencionado Edward Said classificou o acordo como mais “um instrumento de rendição palestina” e a “segunda maior vitória na história do sionismo” desde a criação do Estado de Israel em 1948.

Ao longo dos últimos anos, ONU, Anistia Internacional e Human Rights Watch, entre outras organizações, não cessaram de condenar as ações de Israel, classificando-o como um Estado colonial de Apartheid. Tudo muito bom, mas sem resultados efetivos e pela simples razão de que, às democracias liberais, a segurança, a liberdade e as vidas palestinas não importam.

Há medidas diplomáticas e políticas que podem ser acionadas contra o governo e o Estado israelense, mas nada acontece. A conivência silenciosa do Ocidente, e o apoio incondicional dos Estados Unidos, só fazem alimentar a tragédia que se abate sobre a região.

Não se trata de fato novo. Em 1917, o governo britânico, então uma potência imperialista, já se comprometia com a possibilidade de instalar uma pátria para os judeus na Palestina, à revelia das comunidades que viviam na região.

Em 1948, a criação do Estado de Israel pela ONU desconsiderou a oposição dos países e lideranças árabes. Era o início de um conflito, o primeiro de muitos, que terminaria no ano seguinte com a drástica redução dos territórios originalmente destinados a abrigar um Estado árabe e a expulsão de 750 mil palestinos.

Era o início da Nakba – em árabe, “destruição”, “catástrofe” – um acontecimento, para palestinas e palestinos, ainda inconcluso.

O silêncio do Ocidente e de suas principais democracias, têm sua explicação no vínculo, estreito, que aproxima as políticas colonialistas das potências europeias nos séculos XIX e XX daquela praticada por Israel e seus governos.

O Estado de Israel surgiu como parte de uma política imperialista que entraria em colapso nas décadas seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial, a que ele deu continuidade. Na estreita e densamente povoada Faixa de Gaza as memórias do domínio europeu sobre o continente africano e do apartheid na África do Sul são o testemunho que o colonialismo e as políticas de limpeza étnica sobrevivem.

A extrema direita se alimenta do terror, do medo e da morte

Por último, mas não menos importante: a extrema-direita israelense no poder precisa do, e por isso alimenta, o terror. Especialistas acreditam que, findo o mais novo “conflito”, provavelmente o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu cairá. Parte da opinião pública israelense o responsabiliza e o acusa de ter ignorado os inúmeros avisos da inteligência sobre a eminência de uma nova e violenta investida do Hamas.

Mas isso é apenas parcialmente verdade. Netanyahu, seus ministros e o presidente Herzog – que co-responsabilizou os civis pela violência do Hamas para justificar a morte indiscriminada de palestinas e palestinos – não ignoraram a possibilidade de novos ataques.

Pelo menos, não ignoravam que não se suporta anos de terror, de encarceramento, de humilhação, de violência e de impunidade contra uma sequência ininterrupta de crimes contra a humanidade, sem que, em algum momento, esses anos de sofrimento retornem, também, em forma de violência.

As promessas de “arrasar Gaza”, de ocupar e punir o território de uma forma nunca vista antes, mostram que a arrogância da extrema-direita e do Estado de Israel não tem fim. Mesmo que isso custe um preço alto, com milhares de vidas palestinas e israelenses ceifadas: a extrema-direita israelense precisa do terror e do medo; ela se alimenta e se fortalece com a violência e a barbárie; depende e sobrevive do horror e da destruição.

Qualquer semelhança com a extrema-direita brasileira, que nos últimos dias exibe, orgulhosa e cúmplice, a bandeira de Israel, não é mera coincidência.

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