O país dos caminhos que se bifurcam: conciliação e enfrentamento

A principal oposição à Lula virá de uma extrema-direita fascista organizada, cuja capilaridade e uso das ferramentas digitais se mostra a cada dia mais eficiente

Bolsonaro emergiu de seu lockdown nesta terça (1), 45 horas depois de derrotado nas eleições de domingo. Falou por pouco mais de dois minutos como o covarde mentiroso e sem escrúpulos que sempre foi.

Não reconheceu a derrota – ninguém esperava que ele tivesse o brio de parabenizar Lula pela vitória –, tampouco condenou os bloqueios golpistas protagonizados por seus cúmplices que, desde a segunda, paralisam de maneira criminosa estradas Brasil afora, provocando prejuízos econômicos e transtornos pessoais.

Nas redes sociais, seus acólitos mais próximos tentaram emprestar alguma dignidade ao pronunciamento. Mas o balbucio oficial foi o último suspiro de um governo que já acabou. E isso não é pouco.

É verdade que a diferença entre Lula e Bolsonaro foi pequena. E que, apesar de pedófilo, genocida, corrupto, miliciano, machista, racista, homofóbico, fascista, autoritário, ignorante, inculto, negacionista, mentiroso, irresponsável, desonesto, marido infiel, péssimo pai e preguiçoso, Bolsonaro conseguiu mais de 58 milhões de votos.

Nem por isso, necessariamente, se pode falar em uma “vitória apertada” de Lula. Eu mesmo, no domingo, depois de descobrir que consigo ficar sem respirar muito mais tempo do que julgava, me senti profundamente decepcionado com o resultado. Mas a vantagem de viver com alguém mais inteligente e sensata, e menos inflexível que você, é ser estimulado a olhar as coisas sob outra perspectiva (merci, Simone).

Em 2018, ainda um “outsider”, com uma estrutura partidária improvisada e pouco tempo de televisão, Bolsonaro teve, no 2º turno, apenas 400 mil votos a mais que nesse ano. E há um abismo a separar os dois pleitos.

A reeleição, uma emergência

Em quatro anos de governo, Bolsonaro manteve acuadas organizações da sociedade civil. Colocou em funcionamento uma rede ampla e capilarizada de fake news imbuída da missão de espalhar a desinformação e a mentira, atacar e destruir reputações e desacreditar as instituições. Questionou tribunais, jornais e jornalistas, inflamou, estimulou e participou de manifestações antidemocráticas, algumas em plena pandemia.

Ao longo de 2022, colocou o Estado e a máquina pública à serviço da reeleição. Em julho, alegando “estado de emergência”, aprovou a “PEC das bondades” e gastos de R$ 40 bilhões acima do teto. Entre outras coisas, aumentou o número de inscritos e o valor do Auxílio Brasil, liberou parcelas extras do auxílio para caminhoneiros e taxistas, perdoou dívidas de estudantes no FIES e manteve baixos, artificialmente, os preços dos combustíveis, enquanto sangrava a educação e a saúde para bancar os bilhões do “orçamento secreto” e comprar o apoio do Centrão.

Seus apoiadores invadiram as redes e as ruas mentindo, ameaçando, agredindo e assassinando quem estava do outro lado. Empresários coagiram empregados, a milícia digital impulsionou o medo e o embuste nas redes, associando Lula ao PCC e ao narcotráfico, ou criando factoides como os “banheiros unissex” nas escolas e a ameaça de fechamento das igrejas e da perseguição aos cristãos em um governo petista.

Em uma última e desesperada tentativa, colocou a Polícia Rodoviária Federal nas ruas e rodovias do Nordeste no dia 30 de outubro, em operações cujo objetivo era dificultar, se possível impedir, o voto de milhares de eleitores de Lula.

Eles tinham tudo: gastos bilionários, prefeituras comprando votos, a máquina estatal aparelhada, a mentira, a intimidação e a violência. E ainda assim, perderam. E nós, vencemos. Não, não é pouca coisa.

Por outro lado, os desafios que temos pela frente são enormes. Em outras colunas, disse e repeti que vencer eleitoralmente Bolsonaro é um passo importante e necessário, mas não suficiente para derrotar o bolsonarismo. Sua votação robusta e a eleição de inúmeros políticos alinhados, são indícios de que não foi “a direita [que] surgiu de verdade em nosso país”; foi a extrema-direita quem subiu do esgoto político e mostrou a cara.

A armadilha da conciliação

A principal oposição à Lula não virá de tucanos, nem das chantagens emedebistas e do Centrão, como no passado recente. Ela virá de uma extrema-direita fascista organizada, cuja capilaridade e uso das ferramentas digitais vem se mostrando a cada dia mais eficiente. Tampouco as estratégias serão as institucionais. Estamos a falar de uma milícia que fará tudo o que estiver ao alcance, tudo, para desestabilizar o futuro governo.

Não existem as tais “quatro linhas da Constituição” para criminosos políticos.

A estratégia é produzir o mesmo ambiente de instabilidade, insegurança e medo que caracterizaram esse últimos anos. A aposta no caos manteve Bolsonaro no governo e sustentará o bolsonarismo na oposição, e é hora de pensarmos até onde, afinal, apostar mais uma vez na conciliação pode não ser amor, mas cilada.

Não discordo que o papel de Lula, desde já, é abrir o diálogo com setores da oposição na tentativa de, na falta de melhor palavra, pacificar o país e garantir algum clima de normalidade. De minha parte, foi principalmente por isso que votei nele, e não porque alimento algum tipo de expectativa ou compactuou com o pensamento mágico de que voltaremos aos bons tempos e seremos felizes como há 20 anos.

Mas me parece, igualmente, que tão importante quanto o diálogo, é debelarmos o bolsonarismo, uma força política com a qual não há diálogo possível, tampouco conciliação. Se em determinados contextos, ela pode ser uma alternativa à construção de institucionalidades democráticas, em outros é uma estratégia conservadora e reacionária, um terreno fértil para a mobilização, manutenção e reprodução de um poder autoritário.

A democracia é a arte do diálogo. Mas é também a capacidade de discernir aqueles momentos em que é preferível o enfrentamento à conciliação. Acho que aprendemos, a um custo altíssimo – quase 700 mil vidas ceifadas – com quem se pode dialogar, e quem é preciso enfrentar.

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