O Souvenir

O espetinho do Dinei, na Sibéria curitibana, é a prova do que diz Alex Atala: a comida é um souvenir maravilhoso

“Eu sou ligado neste bagulho aí de cachorros, sabe. É uma parada aí que eu gosto demais”, dizia o menino, 17 no máximo, bermuda comprida, mãos no bolso da blusa com capuz preto e os primeiros fios de barba aparecendo. Nas orelhas, alargadores do tamanho da moeda de um real. “Ó, tá ligado, tem uma feirinha de cachorros no final da Toaldo Túlio, sabe?”.

De frente para o menino com capuz, Dinei liga dois fiozinhos vermelhos na bateria instalada entre os isopores de refrigerantes e os de espetinhos. O arsenal completo, que também inclui álcool, carvão e o cano de PVC que abriga o paradoxal guarda-sol dos dias de chuva, fica dentro da carretinha descoberta. Em uma das mãos de Dinei, a outra extremidade dos fiozinhos, o ventilador, provavelmente uma ventoinha de computador, penso eu, que sopra a brasa e imediatamente vêm as labaredas.

“Mas eles têm cachorro grande lá na feirinha?”, Dinei diz olhando bem de pertinho a churrasqueira portátil que o amigo serralheiro fez e, depois de aprovar o vento e a brasa, se dirige para o garoto com capuz. Ele então deixa a mão aberta na altura da cintura, a palma em paralelo com o chão, “Tô precisando de um deste tamanho, assim, ó. É pra impor respeito”.

Delícias de Minas: a cara de um estado num carrinho em Belo Horizonte. Foto: André Tezza

O garoto arranca dois pedaços do espetinho, faz que sim com a cabeça, e sem terminar de mastigar, “Cara, aquele bagulho tem de tudo, tem até aqueles da Sibéria, tá ligado? E se você contar essa história sinistra, que a sua filha não para de chorar porque o cachorrinho fugiu, vão fazer bem mais em conta”. O garoto ri com gosto, os fiapos de carne entre os incisivos, “Quer dizer. Depende de quem tiver lá na feirinha. Se for o pai, ah, o pai é casca grossa. Agora se for o filho, o filho é meu chegado, conta lá a história da filha, não vai sair mais que quatrocentão”.

Na confusão da Manoel Ribas em fim de tarde, um motorista em um Lada velho abre o vidro e grita para Dinei, “ÊÊÊ, vida mansa lascada!”. Dinei olha, abre o sorriso com gosto, estica o ventilador para o alto e grita também, “ÊÊÊ, lasqueira doida!”. Em frente à churrasqueira, eu e mais cinco pessoas balançamos o corpo de um lado para o outro – é início de outono, a noite vai marcando o céu e já tem um vento frio para ser amansado.

As pessoas adoram Dinei. Ele é bom papo e bom papo seduz as pessoas. No comércio, pode fazer um milionário, é a história do Silvio Santos, vou pensando enquanto pingo a pimenta caseira que já tem fama, “É receita minha, coisa fina essa malagueta aí”. Do lado oposto da rua, o carro de Dinei estacionado, um Space Fox branco – na traseira, o engate da carretinha. A cada ano, Dinei aparece com um carro maior.

Costurada no peito de Dinei, a logomarca laranja: Filé Miau. A marca é o gato Félix de braços abertos em direção ao céu e o Filé Miau vem impresso em fontes festivas. A simpatia desata os nós da desconfiança e o humor está sempre estampado na cara de Dinei. As pessoas se servem sem pedir licença e o clima é de confiança. Para quem faz mais de duas perguntas, Dinei entrega o cartão com o gato Félix, “Eventos também. É só chamar. Tem página no Face”. As histórias se multiplicam como uma Sherazade que nunca termina um causo no primeiro espetinho e assim os clientes vão ficando e se empanturrando, “Cara, eu tô aqui todas as noites. T-o-d-a-s-a-s-n-o-i-t-e-s. Se eu não tiver aqui, pode saber, alguma coisa aconteceu. Uma vez eu não vim, tava doente, você acredita que um monte de gente ligou pra mim?”. Eu acreditei.

A comida de rua é o espírito da rua. Estava no coração do Butiatuvinha, a duas quadras da casa onde morava, no bairro mais gelado da cidade, a Sibéria de Curitiba. Mas podia ser na rua de qualquer lugar do mundo. A lei é sempre a mesma: se tem gente, se há conversa, confiemos. Nunca me arrependi, mesmo quando as unhas de quem preparava a comida estavam pretas e compridas, mesmo quando o day after não era bom. Minha figurinha repetida no álbum de viagem: eu desvalido, pálido, com uma Coca-Cola em uma mão e na outra a bolacha de água e sal.

Feirinha de comidas turcas em Berlim. Foto: André Tezza

Há mais na comida popular do que o enriquecimento dos sentidos. Para o chef Alex Atala, um dos souvenires mais importantes da viagem é a comida, porque ela sintetiza de modo poderoso e objetivo, com não mais que três ingredientes, a cultura de um lugar. Azeite de oliva, manjericão e mozarela – a alma italiana, capiche? Alga, shoyu e gengibre – a miniatura do Japão.

A definição de Atala é sintomática porque, até ontem, a mesma conceituação da síntese da cultura era mais privativa das definições de arte, era um dos seus passaportes habituais de interpretação. Hoje, a bem da verdade, a síntese das identidades de país se tornou complexa e multifacetada, é sempre a tensão entre o local e o mundo. Mas a comida continua tendo estatuto diferenciado.

Coca Cola e bolacha de água e sal em um day after ruim. Foto: Francis Haisi

O garoto com capuz se foi. Dez espetinhos contados, seguro os palitos na mão e mostro para o Dinei. “Quinzão”. Dinei tira o troco da pochete na cintura e continua a história do político que ofereceu um maço de dinheiro, “Deste tamanho assim, ó”, um arco de 10cm entre indicador e o polegar. “Não quero dinheiro, não. Não vou fazer campanha para ninguém”, Dinei não se mete com política. Mas ele fala sobre política – conforme os ouvidos da plateia, conforme o espírito do dia, o discurso muda, vai se metamorfoseando, pode ser tanto de esquerda quanto de direita.

Ele me confidencia, a voz mais baixinha de novo, “Não quero saber de política, mas sei bem que espeteiro não dura muito não. Num pau brabo, guenta cinco anos. Eu já tenho quase dez, é vida dura, frio, chuva, trabalhar de pé. Não reclamo, mas tenho outros planos para o futuro, criação de galinhas, fazer sabão artesanal, não sei”.

Sob o céu gelado do Butiatuvinha, os clientes não paravam de chegar. Desconfio que a maioria, como eu, vinha para ouvir e não para comer. Um ano depois, em uma noite mal dormida, sonhei que Dinei se elegeu vereador em Campo Magro.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima