Meninos na montanha

Tenho voltado para as montanhas. É em outro ritmo, com mais organização e conforto, sem nenhuma expectativa de impressionar alguém

Só depois de adulto barbado, minimamente autossuficiente, já capaz de lavar as mãos sem precisar receber uma ordem, entendi o quanto demora para um homem amadurecer. Caso amadureça.

Eu realmente achava que o universo das expedições na Serra do Mar, das noites frias dentro de barracas que condensavam, do hediondo miojo misturado com a dúzia de almôndegas em lata era o mundo que mais interessava ao universo da sedução e que faria de mim alguém, digamos, atraente.

Eu achava que chegar imundo na ferroviária de Curitiba, depois de uma caminhada de dois dias nas trilhas do Marumbi (o barro podia afundar até algum ponto entre o joelho e a cintura), o rosto picado por pernilongos (a ideia ruim de dormir ao relento), com uma bandana improvisada (a camiseta suja, com as mangas formando um nó cego na nuca, a aparência de um traficante) faria de mim um sujeito a se considerar mais.

Hoje não me admira que nem eu nem nenhum dos meus amigos tivéssemos uma namorada – mas, na época, era mistério e injustiça. Claro que tudo o que queríamos era andar de mãos dadas com alguém.

O entorno não ajudava muito e se acontecia de um menino da turma amadurecer antes, isto é, ter um mínimo de organização, higiene e disciplina, seria o alvo predileto das piadas. Um menino adulto entre meninos crianças é como o Piggy, de O Senhor das Moscas, o menino que tem a voz da razão, o discurso da mãe e do pai. Eis o menino que tradicionalmente todos os outros meninos odeiam. Na nossa turma, este menino era o Goiaba. É bem verdade que o fato de o Goiaba ser hipocondríaco e compulsivo por organização facilitou para que ele se tornasse uma lenda entre nós.

Meninos costumam estar em disputa, velada ou não, testando os limites da violência como forma de socialização. É um enredo que pode brotar espontaneamente, nos detalhes sutis: o trem vai desacelerando aos poucos na estação do Marumbi e, sob a coação dos demais você é obrigado a pular antes de o vagão parar, precisa provar para os outros que não é medroso, que não é fraco, que não é mais criança. Você pula, por pouco não se esborracha, foi vitorioso na prova, mas os outros o tratarão com desdém. Só não o tratariam com desdém se o fracasso fosse retumbante, porque então o escárnio reinaria. Quando você ainda precisa provar que a infância acabou, você ainda é criança e ainda vive com as crianças.

No fundo, todos éramos toscos e imaturos demais para qualquer interesse alheio, ainda achando que o gentil bom moço que soubesse fazer um miojo no fogareiro de querosene fosse o suprassumo da independência e do galanteio. A nossa timidez crônica – talvez não fosse propriamente uma timidez, mas o medo do fracasso – contribuía para que nada acontecesse. E, de fato, nada acontecia.

Depois do Marumbi, eu fiz caminhadas pelos parques nacionais do Brasil, pelos parques da Patagônia e, no meu ápice, o famoso trekking de duas semanas até o campo base do Everest, no Nepal. Aquele em que se fica uns bons 10 dias sem tomar um banho.

E então me casei, comecei a dar aulas, outra fase da vida havia começado. E fiquei mais de duas décadas longe do mato.

Nos últimos anos, cada vez mais tenho voltado para as montanhas. É em outro ritmo, com mais organização e conforto, sem nenhuma expectativa de impressionar alguém – exceto a minha própria autoestima. Na volta ao mato, não sei o quanto não busco a inocência que se perdeu.

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