Prefácio

Ele era um homem fiel as suas origens. Filho de imigrantes alemães, aprendeu desde cedo a cultivar a austeridade como modo de viver

Ele era um homem de seu tempo. Nada mais. Nada menos. Nascido nas décadas iniciais do século passado, levava consigo as marcas de quem viveu aquela época, incertezas sobre o futuro e um medo agudo de viver. Também não destoava dos demais em relação ao seu machismo incontido e ao indisfarçado racismo, sentindo-se “abençoado” por ter vindo ao mundo como branco e cristão.

Ele era um homem de sua classe social. Acreditava piamente no trabalho como fonte de dignidade e de riqueza. Para ele, a desigualdade econômica resultava da distinção de qualidades inatas entre os homens. Não havia outra razão. Assim, Deus nos fez diferentes e essa seria a causa primeira, a origem de todas as iniquidades. No entanto, alguns poderiam compensar suas debilidades com muito trabalho. Em uma palavra: meritocracia.

Ele era um homem fiel as suas origens. Filho de imigrantes alemães, aprendeu desde cedo a cultivar a austeridade como modo de viver. Trabalhava muito. Praticamente não gastava com supérfluos e economizava grande parte do que ganhava. Havia nascido riquíssimo. Tornou-se muito mais.

Ele era um homem de sua religião. Comparecia, semanalmente, aos cultos da Igreja Luterana. Ouvia atentamente a homilia do pastor. Ao final do mês, entregava o que deveria ser, mas não era, a décima parte de sua renda às obras de caridade da igreja. Costumava justificar esse pequeno desvio afirmando que “os pobres precisam aprender a pescar sozinhos” e não o fariam se “sempre lhes déssemos o peixe”. Mais uma vez: meritocracia.

Um homem de seu tempo, de sua classe social, fiel às origens e à religião. Foi um grande industrial. Trabalhou, por mais de 50 anos, quase 12 horas diárias, excetuando os domingos, os “dias do Senhor”, como dizia. Amealhou um patrimônio invejável que acreditava resultar de bençãos divinas por reconhecer a vida de trabalho, esforço e austeridade.

Ao final da vida, já quando suas forças não lhe permitiam o empenho de outrora, ele decidiu destinar uma parte dos dias para registrar suas memórias. Muitas distorcidas pelo passar dos anos. Outras tão vivas como se ontem vividas.

Obras como essa não gozam de grande valor literário. Muitas vezes nem sequer se prestam a servir como fontes históricas, pois, de hábito, contam com uma narrativa laudatória sobre o protagonista. Falhas são ocultadas, defeitos de caráter relativizados e as virtudes engrandecidas, com realce aos grandes feitos, que são inventados, se não existirem.

Este livro não é muito diferente dos demais do gênero. É, bem dizer, uma obra de ficção, apesar de se dedicar a contar as memórias do autor. Em razão disso, eu levei algum tempo para compreender o convite para elaborar o seu prefácio. Perguntava-me qual seria a real razão por trás disso. Afinal, cultivei uma relação tormentosa com o autor do livro.

Éramos pessoas muito diferentes. Ele, um homem conservador. Capitalista convicto. Eu, um rebelde, militante da juventude anarquista. Depois, um professor universitário, intelectual marxista e que, nas horas vagas, lecionava para a juventude socialista categorias do pensamento de Gramsci.

A forma de ele pensar o mundo se sustentava em torno da já mencionada meritocracia, como recompensa divina àqueles que se esforçaram. Nunca se perguntou se o fato de nascer em uma família abastada, de ter recebido excelente educação formal, inclusive no exterior, e de ter sido premiado com uma pomposa herança contribuíram para o seu sucesso. Não. Ele detinha riqueza porque mereceu. As desigualdades econômicas resultariam da vontade de Deus, não sendo fruto de um modo de produção opressor, desigual e excludente.

Como proprietário dos meios de produção, ele não aceitava interferência alguma no seu negócio. Nem do Estado, muito menos dos sindicatos de trabalhadores. Era ele quem administrava suas empresas e quem sabia o que poderia ou não conceder aos operários. Não importava o que dissessem as leis trabalhistas, ele praticava o que entendia ser justo. Nem mais, nem menos. O justo.

E esse estado de justiça era aferido a partir do lucro. Quanto maior lucro, mais justo era para ele. Não à toa, os salários praticados em suas empresas eram insuficientes para a subsistência. Não à toa, para ele, trabalhavam milhares de coitados e coitadas que não tinham alternativa na vida a não ser se submeter às condições degradantes de trabalho e a serem explorados por pessoas cruéis.

Ele também era um homem fascinado pela família. Tão fascinado que teve várias, sendo ao menos duas simultâneas. A austeridade financeira e a vida de rigor religioso contrastavam com as noites recorrentes nos puteiros da cidade, onde esbanjava dinheiro com bebidas e mulheres. Apesar disso, não faltava a um culto de domingo na igreja.  

Todo esse moralismo hipócrita, como é todo moralista, foi causa de muita desavença entre nós, levando ao nosso rompimento.

Quando partiu, eu já não falava com ele há alguns anos. Nem sequer o via. Na leitura de seu testamento, enquanto o testamenteiro discorria sobre a partilha do enorme patrimônio, uma infinidade de bens e dinheiro para cada um dos herdeiros, mesmo considerando os muitos filhos e filhas que deixou, eu pensava na estupidez de tudo isso. Me perguntava se as nossas diferenças tinham sido tão grandes a ponto de não nos permitirem conviver ou se eu havia sido radical em demasia, como ele repetia aos meus irmãos. Quem sabe ele tenha me dado uma resposta póstuma.

Todos se surpreenderam quando o testamenteiro anunciou que ele havia me destinado o seu livro de memórias, cuja publicação já estava assegurada, tendo como única exigência que eu redigisse o prefácio. Depois de alguns meses refletindo por qual razão teria tomado essa decisão, concluí que ele desejava um prefácio exatamente assim, isto é, alguém completamente diferente dele dizendo – mesmo que em poucas linhas – quem ele foi. Como se o prefácio o despisse da couraça moralista e hipócrita e lhe retirasse as máscaras de toda vida e pudesse apresentá-lo como exatamente era. Algo que ele não teve a coragem de fazer em suas memórias.

Ou, simplesmente, esse gesto tenha representado uma tentativa póstuma de conciliação entre um pai e um de seus filhos, separados em vida por causa da diferença entre seus valores. Não mais do que um pedido intempestivo de desculpas, algo que jamais ele cogitou fazer em vida, mesmo com o passar dos anos e a proximidade da morte.

Não há como responder.  

Enfim, desejo que desfrutem desta obra, deixando-os às próprias conclusões. Espero que gostem de “Memórias de um homem de bem”.

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