O ministro não gosta de inclusão. Muitas escolas também não

Muitas escolas optam por empurrar crianças com necessidades especiais para fora, ao invés de incluí-las

O desministro da Educação brasileiro, Milton Ribeiro, deu sua contribuição para o já volumoso anedotário do governo Bolsonaro nos últimos dias fazendo várias declarações contra a inclusão de alunos “especiais” em escolas regulares. Crianças com down, autistas, TDAH e outras questões de cunho cognitivo, comportamental ou físicas estariam “atrapalhando” o andamento das aulas. Vindo do ministro da educação, essas declarações são um tremendo tapa na cara de professores e demais profissionais da educação, bem como pais e os próprios alunos, que estão há décadas trabalhando pelo cumprimento da legislação e a efetiva integração de todas as crianças ao ensino regular.

Mas será que a escola do seu filho concorda com o ministro? Você já parou para verificar quantas crianças “especiais” convivem diariamente com ele na escola? Porque a fala do ministro é grave, mas infelizmente reverbera algo que está na mente e na prática de muitas escolas no país, notadamente escolas privadas. E isso não afeta apenas que é “especial” (uso o termo especial aqui entre aspas porque ele supõe que há uma normalidade, mas como vou comentar mais a frente, não é caso). Afeta todas as crianças e nossa experiência com a educação formal no Brasil.

A educação inclusiva começou a efetivamente estar no horizonte de objetivos do sistema escolar brasileiro a partir do início do século XXI, quando a legislação passou a prever a inclusão nas políticas públicas educacionais. Ao contrário do que se pode pensar, não se trata de uma mudança que afete apenas crianças com Down, autistas ou deficiência física. A educação inclusiva é, na realidade, uma política pública que respeita o princípio constitucional brasileiro de que a educação é um direito de todos. Ela também estabelece a ideia de que toda criança tem necessidades e processos de aprendizagem próprios.

Traduzindo para português simples: cada um tem seu jeito de aprender. E isso precisa ser respeitado dentro do ambiente escolar de forma que o direito de todos a educação seja preservado.

A educação inclusiva também reconhece a importância da convivência promovida pela escola. Para além do currículo tradicional, a escola é o ambiente no qual a criança sai do convívio familiar e passa ao convívio em sociedade. E precisa lidar com as diferenças. Importante, não é? É uma espécie de test drive da vida em si, quando não podemos impedir o mundo de nos impor diferenças, não é mesmo?

De 2000 até hoje, a educação brasileira debateu muito e criou mecanismos que auxiliam a promoção dessa convivência. Isso significa que principalmente as escolas passaram a ser cobradas a ter recursos que permitam o atendimento de diferentes necessidades no ambiente escolar: ter professores auxiliares em sala junto com o titular para atender crianças que precisam de atenção particular, a tradução do conteúdo para libras, braille, a presença de equipes multidisciplinares na escola e a previsão de ambiente especial para atividades e provas.

Isso não atende só a criança com Down, por exemplo. Isso ajuda a professora a poder reconhecer e melhor atender qualquer necessidade específica. Uma criança com Transtorno de Processamento Sensorial (TPS), por exemplo, é melhor atendida em alguns momentos por ambientes menos estimulantes. Muito embora o TPS seja associado frequentemente ao autismo, é comum a sua ocorrência em crianças que não estão no espectro.

O próprio reconhecimento de diagnósticos como o TPS, a hiperatividade são avanços tanto na educação quanto na medicina nos últimos anos. Elas apontam que a avançamos em reconhecer que há pessoas que processam a informação de forma diferente. E isso não é ruim, nem bom. É só diferente.

Só que a escola tradicional costumava a pensar nas crianças como telas em branco. Telas que seriam pintadas pela sabedoria dos professores. Telas são objetos inanimados e idênticos, que só vão ganhar personalidade após a intervenção externa.

Essa abordagem funcionava relativamente bem, uma vez que ela era trabalhada junto a imposição de uma disciplina canina e da pouca intervenção da criança no processo de ensino. Digo que funcionava bem do ponto de vista de quem olha de longe, e porque a criança, apesar das falhas no processo educativo, consegue estímulos intelectuais de muitas outras fontes.

Mas essa abordagem falha com situações particulares que vão provocando problemas no decorrer da carreira acadêmica. A criança que não consegue se encaixar no todo vai, dia após dia, sendo deixada de lado. Ela reprova, ela passa a faltar, a se comportar de forma de inconveniente e, no fim, desiste da escola. Esses problemas, sabemos, não afetavam crianças com Down porque no passado os casos “especiais” diagnosticados eram despachados para escolas especiais, mesmo quando a integração dessas crianças no ensino regular fosse perfeitamente possível. Mas afetavam pessoas “normais”.

Isso impunha uma mentalidade escolar de privilégio ao que se considera “normal”, e abandono do resto.

Mas se a educação é um direito universal e se parte do objetivo da escola é ser um ambiente social diverso, a escola estava falhando miseravelmente ao impor uma “normalidade”. Pior, estávamos falhando em melhor aproveitar as diferentes formas como as pessoas aprendem, processa a informação.

Esse problema não desapareceu. Ele permanece porque as escolas têm dificuldade em se adaptar a essa nova realidade. Como qualquer adulto maduro sabe, a diversidade é sempre desafiadora. Mas ela também faz algo incrível para nós: nos desafia a sermos flexíveis, criativos, a nos adaptar. Algo que qualquer consultor mequetrefe de produtividade irá dizer que é uma característica “do profissional do futuro”.

Só que esse processo de inclusão, de reconhecimento de que crianças diferentes aprendem de forma diferente não é fácil nem barato. Ele não é resolvido pela compra pontual do último computador, tablet, tela interativa. Nem por paredes coloridas e salas bonitas.

A inclusão depende de profissionais maduros com formação acadêmica sólida. Às vezes implica em turmas de alunos menores e, eventualmente, atenção individual. Isso tudo num momento em que há uma pressão para baratear a educação tanto no sistema público quanto no sistema privado.

E o pior: os efeitos desses investimentos não são tão vistosos quanto tablet e computadores novos. Eles só vão aparecer (como todo investimento realmente adequado em educação) quando as crianças que estão estudando agora estiverem no ensino superior, na vida adulta. Ou seja, daqui a 20, 30 anos.

Óbvio que esse tipo de situação não é atraente nem para gestores públicos eleitos, que precisam ter imagens bonitas para mostrar no horário eleitoral, nem para gestores de escolar privadas, que precisam vender algo simples e pontual para pais ansiosos e acostumados a comprar as coisas por impulso.

O efeito prático disso é que temos hoje gestores públicos tentando desmontar a política de inclusão. E temos escolas particulares que vão lentamente empurrando alunos com “necessidades especiais” para fora. Afinal a educação aí é um negócio. E um negócio precisa ter custos sob controle e uma margem de lucro decente.

Escolas privadas são negócios com margens de lucro bastante pequenas. Isso as pressiona a ter mais alunos por sala e menos professores e demais profissionais por aluno. Entendem o que isso significa?

Mas isso só é problema para os pais de crianças autistas, com deficiência física, down etc, não é? Não. É um problemão para todo mundo porque essa escola vai querer um padrão de aluno. E no processo ela vai:

  1. demorar para identificar e atender situações especiais (sabe a escola que vai te pedir laudos técnicos para fornecer qualquer atendimento especial para o seu filho com Déficit de atenção?)
  2. mesmo com laudos, a escola vai resistir em criar uma situação ideal para a criança, colocando pais e professores em conflito. Como se a mãe que está pedindo atenção especial a uma necessidade do filho estivesse tentando roubar das outras crianças algo.
  3. a escola sempre vai jogar para a família a responsabilidade de diagnosticar a criança, deixando de agir prontamente em situações que o aluno exige pontualmente uma atenção especial

Já vi isso acontecer com crianças com TDAH, com Down, com altas habilidades. Ou mesmo crianças que têm um desempenho diferente em sala. Sabe a criança que passa pelo conteúdo mais rápido que os colegas e fica entediada?

E como a escola está pouco interessada em ajudar a criança, a professora fica numa situação muito ruim, em que não tem como atender as necessidades do alunos, mas também precisa dar conta do resto dos alunos.

Mas como saber se a escola do seu filho não é inclusiva? Bom, é simples. No Brasil, a cada 700 nascimentos, 1 é de uma criança com down, cerca de 10 estarão dentro do espectro do autismo, 175 terão deficiência física, 35 terão TDAH. Ou seja, se seu filho está há quatro, cinco anos dentro de uma escola e não teve colegas com essas condições, algo está errado. Ou aquele coleguinha com Down de repente mudou de escola.

Outro sinal forte é quando a escola parece mais preocupada em “diagnosticar” o seu filho, do que encontrar o que na estratégia de ensino não é adequada para ele.

Para muitos, quando uma criança “especial” vai embora da escola, a sensação é de alívio. Lá vai aquela mãe chata e exigente, lá vai aquela criança que “não se encaixa”. Mas a verdade é que algo ali se perdeu. Porque o seu filho vai crescer achando que existe um normal e vai sofrer quando a vida impuser a ele as diferenças. Porque ele mesmo pode ter uma forma de pensar que a escola está ignorando ou até mesmo atrapalhando.

Mas ruim mesmo isso é para o Brasil como um todo. Porque a inclusão é um caminho para identificar e melhor trabalhar nosso capital intelectual. Crianças com Down se tornam adultos produtivos, independentes e felizes, mas só se a gente souber incluí-los. Autistas serão adultos funcionais e, muitos, até mesmo gênios em suas áreas de atuação. E principalmente: incluir é reconhecer que o país é de todos e que rica é a diversidade, não a imposição de um normal difícil de obter.

Um país sem diversidade é um país doente. Como um país cujo ministro fica à vontade para dizer que crianças “atrapalham” a escola. Será que esta doença está aí na sua escola também?

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2 comentários em “O ministro não gosta de inclusão. Muitas escolas também não”

  1. Edson Ribeiro da Silva

    Existe uma ideia de normalidade, de que tudo que é diferente atrapalha, que vinha sendo combatida em outras décadas, apesar de as escolas já então fazerem do aluno diagnosticado com algum problema alguém com uma justificativa para ser aprovado sem passar pelo processo de aprendizagem. A expressão “ele tem laudo” é parte dos jargões usados em conselhos de classe para se indicar que o professor deve dar nota ao aluno para se evitarem medidas administrativas. Essa visão de que a inclusão é uma medida política, que a qualquer momento uma autoridade com outra ideologia pode mudar, era a rotina escolar naqueles anos em que se pensava, em nível oficial, que educação formal deveria ser para todos. Tudo isso foi sendo esfacelado na década passada, com as derrotas dos professores em suas reivindicações. Turmas foram agrupadas, professores perderam o tempo para preparo de aulas. Há uma distância imensa entre a área pedagógica, que detém o laudo do aluno, e o professor que atua na sala de aula. A distância foi aumentando conforme as turmas foram ficando abarrotadas e aquele que precisa de atenções especiais ficou sendo o que demandaria tempo. Os eventos culturais deixaram de ser realizados, os esportivos foram reduzidos. Não se veem, a curto prazo, medidas que possam melhorar a vida desses alunos no ambiente escolar. Não é apenas ali que existe a visão excludente. Já dei aulas para uma turma de graduação em psicologia, em uma universidade de Curitiba, que fez um abaixo-assinado exigindo a saída de uma aluna cega, alegando que o som das teclas da máquina de braile os incomodava. Em uma escola no Seminário, os alunos cegos eram figuras decorativas na sala de aula; eles estudavam, de fato, em outro horário, com uma especialista: a função do professor era preparar atividades para serem feitas com ela, que não dominava os conteúdos curriculares. O mesmo ocorria com alunos autistas, mesmo esses tendo uma especialista ao lado durante as aulas; na verdade, elas às vezes impedem a interação com tais alunos. Já tive aluno que chegou à antiga quinta série aos quinze anos, após reprovações, porque só aos quatorze a escola municipal percebeu que o garoto era disléxico. Existe nas escolas uma tal de “sala de recursos”, para onde vão, até durante as aulas, alunos “com laudos” e o professor nem fica sabendo o que está sendo desenvolvido. Esses recursos são comportamentais, não se referem a conteúdos das disciplinas. Em outra escola, há cerca de dez anos, no Cascatinha, vi uma forma de exclusão que serve como amostra dos modos como o “diferente” pode ser tratado, mesmo aqui não se tratando do mesmo modelo de preconceito: um aluno de quinta série, de 11 anos, muito bom aluno, era grafiteiro, tinha obras já expostas em Curitiba; além de artista produtor de arte de rua, ele usava brinco; o fato de alguns colegas terem passado a tratá-lo por “bicha” levou a presidente da APMF a exigir a transferência do menino, pois as mães não o queriam entre seus filhos; ele foi transferido, depois de uma reunião com pessoas do núcleo de educação que avalizaram a exclusão; eu ainda pude ouvir nessa reunião o discurso, por representantes da ouvidoria, de que arte tira a masculinidade e que os pais deveriam colocar o menino para fazer trabalhos pesados; meu desacordo me valeu um processo administrativo e o afastamento, mas antes ouvi, ao chegar à escola dois dias depois, no estacionamento, a pedagoga aconselhando a mãe a não deixar o menino se envolver “com essas coisas de arte”, mas “colocá-lo para fazer serviços de homem”. Era uma cena inacreditável em uma época de esclarecimento; hoje, talvez essa fala da pedagoga já nem ocorresse no estacionamento, mas diante dos demais alunos. (A mesma escola conseguiu demitir uma professora de espanhol por ela ser argentina e ter sotaque.) Conheço um caso de parente com TDAH já transferido de escola particular. Em 2018, no São Lourenço, um aluno autista, já terminando o ensino médio, publicou dois livros de mangás e já produzia outro de poesias. Era aluno de notas acima de 9,0. O sucesso dele merecia atenção dos sites da secretaria de educação, mas a tendência já era a de ofuscamento desses casos de sucesso. É fácil pressentir o escárnio daquela instituição: “Que serventia têm mangá e poesia?!” A recusa da BNCC em acatar evidências científicas sobre o processo cognitivo vai agravar o quadro que já está sendo desenhado. A fala do ministro coroa o que essa gente que exclui insiste em dizer. Ele é mais um.

  2. Além da escola escolher “diagnosticar”, não atender as necessidades das alunas e alunos, existe uma confusão sobre o que, exatamente, faz parte do pacote Educação. Fiquei chocada quando, na primeira reunião do Nível III, foram apresentadas as questões da escola e foi perguntado às mães e pais se tinham, também, alguma questão. Dentre as questões apresentadas pela escola estava o desfralde, e aí começou um movimento com ares de competição, preocupação e pressão, como se fosse competência da escola junto às mães e pais o “desfralde coletivo”: a minha já desfraldou faz tempo (mãe s e pais orgulhosos, por não ser este um problema seu no momento, ou a fase do vídeo game vencida), o meu não sabe ainda puxar as calças, a minha não se limpa sozinha, o meu usa fraldas ainda (mães e pais preocupado pelo constrangimento que seu filho pudesse vir a passar , além de estarem, do mesmo modo, constrangidos). Na primeira reunião feita individualmente comigo e com o pai da criança, a primeira questão foi, novamente, o famigerado desfralde.
    Essa não deveria ser uma questão da escola (nem das mães e dos pais). É uma questão única e exclusiva da criança e de sua própria percepção corporal. Obviamente que existem as necessidades das famílias em acelerar esse processo, mas não deveria ser esse o papel da escola. Pauta da escola. Mães e pais informam a escola sobre o momento da criança, a quantas anda seu corpo com relação a fazer xixi e coco, a escola se adequa à realidade da criança (proporcionando o espaço para troca de fraldas, banheiro full time) e é isso, meu povo!
    No final da reunião coletiva eu levantei uma única questão, que eu fazia questão: quero que meu filho entre em contato com a diversidade existente de famílias, gênero, culturas, raças, tipos humanos, etc e gostaria que ESSA REALIDADE estivesse em “TODAS AS DISCIPLINAS”, não como temas isolados. Isso pode fazer parte das aulas de psicomotricidade, educação física, da hora do lanche… Pode estar na construção dos espaços, nos livros, nos “projetos da profes”.
    O silêncio de pais, mães e professores foi o que recebi e a diretora prontamente me respondeu algo como: – Sim, veja a pintura nova que fizemos! (uma roda de crianças negras em destaque numa parede, até porque um dos donos da escola é um homem negro). Mas vejam vocês, a escola só tem uma professora negra.
    Enfim…

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