Nunca há perdão para mães exaustas

Está todo mundo exausto. Não quero sair da cama. Tento manter a bola em campo, mas a rotina vem e chuta para longe o tempo todo

“Mãe, você tá triste que o vô morreu?””

Meu filho, 8 anos, não quer dormir. É meia-noite. Estou exausta. Uma bebê dormiu, a outra ainda luta contra o sono. E ele quer conversar. Faz um ano que meu pai morreu. Um ano que o Pancho – nosso cachorrinho – morreu também. Greta, a companheira dele acabou de ter um AVC e está acomodada na caminha, quase imóvel.

Queria ter sido uma boa mãe e respondido meu filho. Mas não, mandei ele pra cama. “Vá dormir, Bernardo. Meia-noite. Mamãe tá cansada. Papai tá exausto. Durma, pelo-mor-de-deus!”.

A verdade, filho, é que não dá pra te responder. O dia foi longo, difícil e acabou como sempre: não dei conta. Quero ficar deitada na cama lendo bobagem na internet enquanto a casa dorme. Só isso.

Se eu pudesse responder diria que não penso nisso. Não dá. Há um ano, quando meu pai morreu, apesar da tristeza, achei que finalmente as coisas entrariam nos eixos. Talvez minha irmã voltasse a falar comigo. As crianças estavam na escola em tempo integral e eu poderia me dar ao luxo de me concentrar no trabalho, sem longos dias no hospital.

Existia a perspectiva de uma rotina minimamente saudável. Eu ia poder voltar a andar, talvez correr. Planejar o dia. Cumprir prazos. Pagar as contas.

Há um ano também começou essa confusão toda em que estamos. As escolas pararam. Estamos presos em casa. Desde então tento equilibrar tudo. Falho miseravelmente.

Meu eu otimista achou que tiraria de letra as crianças estudando em casa, as traduções, o jornal. Mas não foi assim, né?

Faz um ano já. Está todo mundo exausto. Não quero sair da cama. Tento manter a bola em campo, mas a rotina vem e chuta para longe o tempo todo.

Não há perdão para quem não dá conta. O tempo todo surge algo mais que não fiz, um erro a mais na minha ficha corrida. A vizinha da frente não quer que coloque o lixo fora do horário. A outra não gosta do padrão de limpeza da minha calçada.

Toda hora um email, uma mensagem. Algo que não fiz, uma reunião que perdi, uma agenda esquecida.

Cada dia uma nova lombada, outra cratera nesse caminho para lugar nenhum. Não há perdão para mães exaustas. Se você errar, não será esquecido, pode contar com isso.

Os prazos estão correndo e não tenho energia alguma para ir atrás. Todo dia o Bradesco me liga para dizer que as ligações incessantes não vão parar, mesmo que o boleto esteja pago.

As mulheres têm um jeito particular de serem cruéis com outras mulheres. É preciso pisar em ovos, cuidar com o tom, mesmo que por escrito. Tudo pode ser printado, encaminhado, permanentemente marcado na minha ficha suja.

Meu filho está triste porque não joguei Fortnite com ele ainda. A filha do meio começou a errar as coisas para ver se estou prestando atenção. Não estou. A bebê pede colo sem parar e estou apavorada porque cometi outro erro. Usei o tom errado, o gif inadequado, a hora do dia proibida com a mãe do coleguinha da escola.

Pronto. Mais uma que nunca vai esquecer. Que vai fazer daquele pedacinho da minha vida mais um inferno. Vou ter que prestar mais atenção, achar uma forma de me concentrar, lembrar.

Já sei de antemão que falharei. E que o tempo entre esse fracasso e o próximo não terá significado algum. Não importa todos os acertos, os dias em que a coisa andou direitinho, o email respondido prontamente. No próximo deslize, lá vamos nós.

Toda noite mando o filhote para cama porque é a única hora do dia em que há silêncio. Nada de mensagens no whatsapp, emails desaforados, ligações incessantes. A casa está quieta e todo dia é mais e mais difícil pegar no sono e abrir mão dessa paz.

Na madrugada não há cara feia de ninguém, os ovos todos em segurança. Mas as horas passam e fica a angústia, porque amanhã é preciso começar tudo de novo, navegar com cuidado desviando das minas, descobrir o tom certo sem dica nenhuma, resistir a tentação de não sair da cama.

Reviso mentalmente o dia inteiro. Será que ofendi alguém, errei o tom? Que guerra particular comecei sem me dar conta? Amanhã será preciso limpar os banheiros, lembrar de cobrar a lição de português.

Será que comprei shampoo para as crianças? Vou tentar jogar Fortnite. Oferecer frutas pros pequenos. Por o lixo para fora no horário certo. Varrer a calçada.

E mais uma vez tentar não cometer erros. Porque nunca há perdão para mães exaustas. Nem quando a exaustão não tem data para acabar.

Sobre o/a autor/a

39 comentários em “Nunca há perdão para mães exaustas”

  1. Mulher, sou mãe de três garotas. Estou quase enlouquecendo. Já desisti faz tempo dessa coisa de fazer tudo sem erros. Ainda assim as amarras são cruéis. Um abraço daqueles bem apertados pra vc.

  2. Que lindo texto… não tenho mais filhos pequenos PP, já sou Avó mas lhe ass, lseguro essa crônica se repete em todos os tempos, em qualquer tempo, com ou sem PANDEMIA, Me Encontrei e me ReEncontrei em vários momentos dessa sua escrita encantadora…
    Sim , para NÓS MULHERES, MÃES OU NÃO , nossas exaustões não têm. PERDÃO … Há meio século e uma década vivencio isso….Hoje nem.me importo . mais continuo .nao dando conta …sem culpa.. super abraço, você me fez bem Roseane
    GRATIDÃO
    Terê

  3. Que lindo texto… não tenho mais filhos pequenos PP, já sou Avó mas lhe ass, lseguro essa crônica se repete em todos os tempos, em qualquer tempo, com ou sem PANDEMIA, Me Encontrei e me ReEncontrei em vários momentos dessa sua escrita encantadora…Sim MULHERES MÃES OU NÃO

  4. Texto que reflete a realidade das mulheres nesse país. Sim, não há perdão para mães exaustas. E a gente mesmo não se perdoa pois estamos com essa cultura da perfeição enraizadas aqui dentro de nós. Momentos difíceis que tem nos exigido energia redobrará. Força pra nós. Coragem! E fé de que isso tudo vá passar e que um dia possamos não nos cobrar tanto. Um beijo e um abraço coletivo de todas nós, mães exaustas.

  5. Belo texto. Também não dou conta e estou exausta. Exausta deste mundo pandêmico e exausta da rotina diária de trabalho nas férias, que estão só no papel. As orientações continuam, as aulas precisam ser preparadas artigos publicados e a pandemia exige novas configurações e planejamentos diferentes para quase tudo. Força para você. Força para nós.

  6. Obrigada pelo seu texto, me identifiquei muito. Não é uma questão de tentar ser perfeita, mas de dar conta do que precisa ser dado e ainda assim é muita coisa. Tem coisas que não exigem perfeição mas que urgem como a louça fedorenta na pia, o bebê com sono que precisa ser minado, o armário da cozinha caindo em pedaços ameaçando a segurança das crianças e o marido fazendo o egípcio…olha é difícil. Tem dias que eu quero sentar e chorar. Aí me lembro da Santa Sertralina que se tornou parte da minha vida depois de uma depressão pós parto. Engole o antidepressivo e lá vamos nós…

  7. Cristiane W Costa

    Maravilhosa como sempre. Disse tudo e mais um pouco. Conseguiu escrever coisas que eu não consigo explicar que sinto. Te amo. Se precisar conta comigo.

  8. Obrigada pelo desabafo, as vezes penso que sou a pior mãe do mundo, vejo que não estou sozinha. Meu filho está com 4 meses, estou dando formula pra ele, pois logo vou voltar a trabalhar, me sinto muito triste com isso, como se tivesse tirando algo de direito dele. Já estou sofrendo por saber que logo vou passar mais de 12 horas do dia longe do meu filho, isso é muito cruel, pois desde o dia que ele nasceu nunca ficou longe de mim. Em muitos momentos coloco a culpa nos governantes, pois não conseguem garantir leis trabalhistas em que uma mãe possa passar mais tempo com seu bebê. Essa separação tão precose em um momento de desenvolvimento tão importante da vida do meu filho me deixa frustrada.

  9. Que texto maravilhoso, a sensação no final do dia é sempre a de que falhei em tudo… O home office, as reuniões, a casa, o almoço, o como que não consegui dar. Sinta-se abraçada, não está sozinha, somos muitas mães cansadas, exaustas, querendo um texto assim pra perceber que o erro é parte de nossa vida cotidiana.

  10. Ahhh, minha querida profe! Que texto necessário! Estamos todas no mesmo barco! Sinta-se abraçada. Te entendo, te respeito e sinto sua dor na minha própria pele. Um dia de cada vez e uma hora tudo isso vai melhorar. Um beijo.

  11. Af! Que saudades de você!!! Obrigada por esse texto!!! Lamento não estar dando conta também pra fazer contato! Não estou mesmo, nem pra possíveis “clientes” por aqui…. Muito muito muito pesado e surreal. Mas pra variar, as tuas palavras são um abraço! Sou fã!!! Obrigada por existir ?

  12. Que belo texto!. A essa mãe exausta, eu diria: perdoe-se. “Fiz o que pude. Fiz o que deu.”, são frases libertadoras, e fazem a cobrança das vizinhas, das outras mães, do mundo, serem reduzidas ao que realmente são: questões dos outros, não da valente mãe. Abs!!

  13. Uma vez eu me surpreendi com um texto, num grupo de mães que você me colocou, por conta do tom de desabafo. Era um texto sobre não dar conta. Você me mostrou que temos de ser verdadeiras com nossos sentimentos e que outras mães montam a nossa estrutura para que fiquemos firmes. Aprendi isso contigo. Fique firme, cuide de você! As crianças superam tudo e nunca vão deixar de acreditar no seu amor.

  14. Esse foi o texto mais corajoso dessa pandemia.
    Não é fácil se reconhecer vulnerável e tentar dar conta do que é impossível dar.
    Te compreendo perfeitamente, Rosiane. Mas seja gentil consigo mesma. Respire.
    Sinta-se abraçada!

  15. Eu nem sou mãe, mas me identifiquei em muitos pontos… E achei incrível.

    Você é uma jornalista f*da, produz matérias de pesquisa e investigação mais do que competentes, e quando escreve assim, “da vida”, me encanta pela sensibilidade e construção tão orgânica e cativante.

  16. Eu realmente precisava ler seu texto hoje, Rosiane. Um nível de precisão (ainda que impreciso) absurdo!
    Há muitas como você e eu, exaustas, cometendo “erros” ultimamente. Mas eu me perdoo se você se perdoar.
    Força aí! ?
    Abração

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