Linhas de transmissão da Engie destruiriam mais de 200 mil árvores nativas

Fracionado em sete grupos, empreendimento terá mais de mil quilômetros de linhas de transmissão, o suficiente para atravessar o Paraná de leste a oeste

Um empreendimento que pode deixar cicatrizes para sempre no estado do Paraná. A instalação de mais de mil quilômetros de extensão de linhas de transmissão realizada pela multinacional francesa Engie resultará em danos irreversíveis para a natureza e para população de, pelo menos, 27 cidades do estado. Corte de vegetação nativa, perda de habitat natural, morte de animais, degradação do solo e perda de riquezas arqueológicas serão algumas das consequências provocadas pelo empreendimento.

Estima-se que um total de 14 mil araucárias, árvore que corre risco de extinção, possam ser derrubadas pela empresa. Seriam devastadas um total de 204 mil árvores nativas. A implantação das torres afetaria de alguma maneira, ainda, a vida de pelo menos duas mil propriedades rurais e de cerca de 30 comunidades tradicionais.

A distância percorrida pelas linhas seria suficiente para atravessar todo o estado paranaense, de leste a oeste, e ainda ‘sobrariam’ mais 247 km de linhas. A distância entre Foz do Iguaçu e Pontal do Sul, por exemplo, é de aproximadamente 743 km.

Cerca de 14 mil araucárias podem ser derrubadas para a obra. Crédito da foto: Luiz Costa/Embrapa.

O projeto, chamado de Gralha Azul, está dividido em um total de sete grupos. Ao todo, 2.484,15 hectares de Áreas de Preservação Permanente (APPs), de Reserva Legal e Unidades de Conservação serão afetados de alguma maneira pela obra. A ironia está no nome do empreendimento: gralha azul é a ave-símbolo do Paraná – uma das espécies dispersoras do pinhão – e que, por causa da supressão da Floresta com Araucária, assim como esse ecossistema, também sofre com o risco de extinção. 

O projeto da Engie passou por estudos que foram encomendados pelo Observatório de Justiça e Conservação (OJC) para uma equipe técnica formada por pesquisadores e profissionais especialistas em estudos de impacto ambiental. Ele revela os riscos do projeto. A análise foi coordenada pelo professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Eduardo Vedor, que é doutor em Geografia, e pelo geógrafo e Mestre em Geografia Marcelo Ban Hung. As análises avaliam criteriosamente os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) da instalação das linhas de transmissão.

Os grupos

Os dois maiores grupos do Gralha Azul terão, juntos, a instalação de 1.146 torres de transmissão de energia elétrica. Ambos passaram por um Estudo de Impacto Ambiental. Um dos trechos vai de Ponta Grossa, nos Campos Gerais, até Bateias, na cidade de Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba e passa, exatamente, em cima da Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana – uma região rica em tesouros arqueológicos, em fauna e flora – e que é protegida por lei.

Projeto vai passar pela Escarpa Devoniana, área rica em tesouros arqueológicos, fauna e flora.

Somente neste trecho estão previstas que mais de 400 novas torres sejam instaladas. No outro trecho, de Ivaiporã a Ponta Grossa, a Engie estima instalar outras 700 torres. O custo do projeto é estimado em mais de R$ 2 bilhões. Haverá desmatamento de aproximadamente 110 hectares nesses dois trechos – sendo que, segundo o próprio Estudo de Impacto Ambiental, cerca de 600 hectares sofrerão algum tipo de interferência direta.

Os pesquisadores da UFPR concluíram que os Estudos de Impacto Ambiental apresentam diversos problemas em relação ao cumprimento da legislação vigente. Os Termos de Referência, que são os documentos que informam as diretrizes para a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental, não constavam no processo de licenciamento ambiental. Esses Termos são documentos públicos e só foram e disponibilizados pelo então Instituto Água e Terra (IAT) após envios de ofícios ao órgão estadual. A análise apontou, ainda, que o EIA não apresentava mapas ou cartogramas, que também só foram disponibilizados mediante solicitação oficial.

Para os outros cinco grupos do empreendimento foram realizados Relatórios Ambientais Simplificados (RAS) por serem empreendimentos de menor potência (230 kV). Nesses cinco grupos serão instaladas mais 972 torres em uma área de aproximadamente 474 km.

Gralha Azul, ave símbolo do Paraná, também sofre com o risco de extinção.

A área de influência direta (AID) total desses sete grupos sobre o meio físico e biótico (fauna e flora) soma cerca de 320 mil hectares do território paranaense – o que significa que uma área que representa cerca de 320 mil campos de futebol do tamanho do Maracanã será afetada de alguma maneira pelas obras do projeto. Esse dado indica o tamanho das áreas que serão impactadas de alguma forma em virtude do empreendimento – seja por desmatamento, por danos provocados pelo transporte e locomoção até os locais das torres, aberturas de estradas, entre outros. Referem-se, portanto, aos impactos diretos mais significativos provenientes da instalação, manutenção e operação. Se levar em conta os sete grupos que fazem parte do projeto, o “Gralha Azul” instalará um total de mais de duas mil torres no Paraná. As torres terão entre 285 a 500 metros de distância uma das outras.  

Obras em APP e em encostas de rios

Uma profissional que presta serviço para uma empresa terceirizada da Engie e que pediu para ser mantida em anonimato confirmou que parte as instalações das torres estão sendo realizadas em Áreas de Preservação Permanente (APP). Somente órgãos ambientais podem abrir exceção à restrição e autorizar o uso e até o desmatamento de área de preservação permanente rural ou urbana mas, para fazê-lo, devem comprovar as hipóteses de utilidade pública, interesse social do empreendimento ou baixo impacto ambiental (art. 8.º da Lei 12.651/12).

As APPs se destinam a proteger solos e, principalmente, as matas ciliares. Esse tipo de vegetação cumpre a função de proteger os rios e reservatórios de assoreamentos, evitar transformações negativas nos leitos, garantir o abastecimento dos lençóis freáticos e a preservação da vida aquática.

As torres ainda estão sendo instaladas em regiões de rica biodiversidade, como encostas de rios e em córregos. A mesma fonte afirmou que presenciou alguns laudos sobre a quantidade de árvores desmatadas serem alterados.

O debate jurídico

O Ministério Público do Paraná, em conjunto com o MPF, pediu a suspensão das ibras do projeto. Crédito da foto: MPPR.

O Ministério Público Federal (MPF), em conjunto com o Ministério Público do Estado do Paraná (MP-PR), ingressou na segunda quinzena de outubro na Justiça Federal para a suspensão das obras dos sete grupos do projeto Gralha Azul. Anteriormente, dois destes grupos da concessão (referente aos trechos Ivaiporã-Ponta Grossa e Ponta Grossa-Campo Largo) já estavam suspensos por força de liminar expedida no âmbito de ação civil pública ajuizada por organizações não-governamentais, como o Observatório de Justiça e Conservação, a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem (SPVS) e a Rede de Organizações não-governamentais Mata Atlântica (RMA).

A ação civil pública requer, liminarmente, a suspensão de todas as licenças (prévias, de instalação e de operação, se houver) e autorizações ambientais expedidas pelos órgãos em favor da concessionária, considerando os sete grupos de licenciamento do empreendimento. São requeridos na ação a concessionária responsável pelas obras, o Instituto Água e Terra do Paraná (IAT) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

A ação do MPF demonstra diversas irregularidades no processo de emissão das autorizações ambientais, entre elas, o fracionamento dos estudos ambientais realizados, o que compromete a real compreensão dos impactos causados e que se mostraram, conforme trecho dos autos, “imprestáveis para um diagnóstico ambiental cientificamente válido e verdadeiro”.

De acordo com inventários florestais apresentados pela própria concessionária e autorizações de desmatamento já emitidas pelo IAT, as obras iriam suprimir mais de 200 mil árvores nativas, incluindo 14 mil araucárias.

Outra ilegalidade apontada pela promotoria é a de que “há, no licenciamento ambiental, patente ausência e insuficiência das compensações em relação aos impactos socioambientais do empreendimento, em especial aos danos e impactos decorrentes do corte e supressão de 23.398 espécimes da flora ameaçadas de extinção”. Para o caso de descumprimento, é pleiteada a aplicação de multa diária de R$ 20 milhões, valor calculado tendo como base o valor total do orçamento do empreendimento, que é superior a R$ 2 bilhões.

Falta de transparência

A Engie realizou somente duas audiências públicas concentradas em Ponta Grossa e Campo Largo para discutir o empreendimento. As linhas de transmissão, no entanto, passariam por 27 municípios paranaenses.Eles chegaram a ser convidados para as audiências, mas novas reuniões não chegaram a ser consideradas pela empresa para os outros municípios, a fim de facilitar a participação de mais pessoas.

Outro lado

No site oficial, a Engie alega que a “implantação do projeto cumpre todo o rito de licenciamento ambiental, em conformidade com a legislação vigente, tendo a anuência dos órgãos competentes”. “Além disso, o projeto foi aprovado pelos 27 municípios interceptados, bem como por concessionárias públicas e privadas responsáveis pela travessia sobre rodovias, ferrovias e hidrovias, e órgãos que tratam do patrimônio histórico e natural”, diz a empresa.

“Assim, o ST Gralha Azul foi projetado de forma a evitar ao máximo o impacto em áreas ambientalmente protegidas e preservadas. O traçado da linha de transmissão foi exaustivamente estudado, bem como a seleção das áreas para instalação das novas subestações. A partir desses estudos, são adotados métodos e técnicas que visam reduzir, controlar e compensar os impactos sobre recursos naturais, sempre em conformidade legal e com medidas de compensação e minimização dos efeitos do projeto”, finaliza a nota oficial da multinacional.

Os sete grupos:

  • Grupo 1

Ivaiporã a Ponta Grossa – 728 torres

  • Grupo 2

Ponta Grossa a Campo Largo – 418 torres

  • Grupo 3

São Mateus do Sul a Ponta Grossa – 294 torres

  • Grupo 4

Guarapuava a Pinhão – 238 torres

  • Grupo 5

União da Vitória a São Mateus do Sul – 295 torres

  • Grupo 6

Irati a Ponta Grossa – 121 torres

  • Grupo 7

Castro a Ponta Grossa – 24 torres

Conheça a Engie

A empresa foi responsável pela construção da Usina Hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Crédito da foto: EBC.

A Engie é uma multinacional que está presente no Brasil desde 1997, quando atuava com o nome de Tractebel. Responsável pela construção da Usina Hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, a Engie foi indicada em 2010 para o ‘Public Eye Award’, um antiprêmio atribuído todos os anos no Fórum de Davos, na Suíça, à empresa ou organização mais irresponsável social e ambientalmente em todo o mundo.

A empresa foi acusada por organizações ambientais de violar as normas de proteção ambiental e de ignorar os direitos humanos das populações indígenas, ameaçadas pela construção da hidrelétrica.

Em 2012, a Engie retirou US$ 1 bilhão de uma usina australiana antes do imposto sobre o carbono vigorar na Austrália. A empresa francesa transferiu esse montante em dividendos da Austrália de volta às empresas controladoras do Reino Unido. O esquema recebeu o nome de Projeto Salmão – uma referência à capacidade desse peixe de nadar contra a corrente, exatamente como esses lucros estavam prestes a fazer.

Detalhes intrincados dessas transações surgiram no Paradise Papers, em 2017, um vazamento de 13,4 milhões de documentos para o jornal alemão Suddeutsche Zeitung e investigado pela equipe Four Corners da ABC em parceria com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos.

No ano de 2015, a agência de notícias Reuters divulgou a abertura de uma investigação para apurar possíveis violações das leis anticorrupção dos EUA e do Brasil envolvendo a Eletrobrás, e incluindo a construção da usina de Jirau, de responsabilidade da empresa Engie.

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