É preciso reconhecer que criar filhos é ação de utilidade pública

A sociedade precisa que a população seja renovada, mas se recusa a respeitar as mães pelo trabalho fundamental de criar e cuidar dos futuros adultos

Em todo o mundo países em que o nascimento de crianças está caindo estão com o alerta ligado. A falta de renovação populacional é um enorme problema social e econômico. Na saúde, por exemplo, os sistemas privados de atendimento funcionam sob a suposição de que uma maioria jovem e saudável irá pagar por uma minoria idosa e que demanda mais serviços. O mesmo acontece nos sistemas de previdência públicas e privadas.

No Brasil, os resultados do último Censo Populacional de 2022 confirmam o que já era percebido tanto pelo poder público quanto pelos negócios privados: o crescimento populacional está em velocidade mínima, com redução acima do esperado. Entre a edição anterior do censo, em 2010 e a de 2022, o país registrou quase cinco milhões a menos de pessoas do que o previsto.

Há décadas, outros países que tiveram redução no crescimento populacional atuaram para remediar o problema que isso representa, criando programas de imigração e incentivos a maternidade. No Brasil esse debate ainda é quase inexistente, mas necessário.

Isso porque, muito embora importante e essencial, o ato de parir e criar crianças ainda é visto por aqui como decisão individual da mulher. Uma decisão que é cercada de críticas e pouco respeitada. Muitas mulheres se veem empurradas para uma maternidade compulsória, ainda mais com o aumento das campanhas de restrição ao aborto tanto aqui quanto fora do Brasil.

Ter filhos é uma decisão que muda a vida da mulher em todos seus aspectos. Afeta a saúde física e emocional, prejudica a mulher no mercado de trabalho e até mesmo sua vida doméstica e matrimonial.

Mas principalmente ser mãe é extremamente difícil e intenso num contexto que fornece cada vez menos apoio. As mulheres que hoje contemplam a maternidade se veem diante ou de abrir mão de trabalhar e ter renda própria, ou de tentar conciliar a rotina profissional com a familiar.

Muitas têm pouca ou nenhuma rede de apoio, uma vez que menos avôs e avós estão dispostos ou têm condições de auxiliar no cuidado das crianças. E descobrem que os serviços que podem auxiliar nesse cuidado são de difícil obtenção, tem regras arbitrárias ou são absurdamente caros. Em Curitiba, por exemplo, manter uma criança pequena numa escola de educação infantil privada em tempo integral custa mais caro que a mensalidade do Ensino Fundamental e Médio e muito mais que muitos cursos de graduação.

Por outro lado, os ambientes que não só não são acolhedores com crianças, mas até agressivos e inadequados para esse público só se multiplicam. Em público se espera que crianças, mesmo crianças pequenas de 2 a 6 anos, sejam silenciosas e permaneçam imóveis, muito embora os adultos se sintam no direito de serem tão barulhentos e inconvenientes quanto quiserem.

Essa falta de tolerância com os pequenos empurra as mães para o isolamento social ou exige que elas procurem serviços, em alguns casos pagos, como o de restaurantes que oferecem os tais espaços kids, úteis porque poucos toleram a exuberância infantil no salão. Também as coloca num ambiente que é extremamente crítico com elas, pouco tolerante e flexível.

Criticar mães é um esporte nacional num país que vê a maternidade como desejo individual, como se ter filhos fosse invenção única das mulheres e não um processo cultural e social intenso que começa na infância. Mãe é alguém que decidiu ter filhos e portanto deve se submeter sem reclamar a todos os perrengues que essa função encerra. Deusmelivreeguarde de reclamar do que quer que seja.

Mas não, a realidade não é essa. A decisão de ter filhos pode até ser individual (vamos deixar de lado aqui o fato de que não existe anticoncepcional 100% eficaz e que qualquer mulher sexualmente ativa pode engravidar mesmo sem o desejo de ser mãe e que com exceção de casos previstos em lei, o Brasil não admite o aborto), mas num contexto social e cultural que mais do que estimula, praticamente exige que mulheres se tornem mães. Mais ainda: o país precisa que elas continuem a decidir serem mães.

Porém, se nós que já somos mães formos sinceras, jamais vamos recomendar essa opção a ninguém. Eu sinceramente não recomendo, a despeito de ser muito feliz como mãe de três crianças. Porque sei o preço alto que pagamos por essa maternidade.

Também vejo cada vez mais mulheres jovens a optarem por não serem mães (o que não as vai deixar livres de serem cobradas por isso). Por que deveriam ser? A começar pela licença maternidade, nada é tranquilo nesse caminho. Frequentemente se acusa as mulheres de estarem “de folga” enquanto os empresários precisam bancar a ausência delas. A realidade, porém, é que a licença maternidade é coberta pela previdência social, assim como outras licenças médicas.

Estar em casa de licença com um recém-nascido é garantir menos custos do sistema de saúde do país com crianças e adultos doentes. E uma futura criança e adulto mais saudável.

Ao voltar ao trabalho as mães encontram outro problema grave pouco comentado: a incompatibilidade entre os horários das escolas públicas e a carga horária de trabalho. Em Curitiba, por exemplo, as escolas em tempo integral funcionam das 8 às 17 horas, com tolerância de 15 minutos no horário de saída, um tremendo de um perrengue para quem trabalha longe da escola e precisa pegar o trânsito do fim de tarde para ir buscar o filho.

Por outro lado, as instituições públicas são pouco flexíveis com os horários de entrada e saída dos alunos, mesmo nas atividades de contraturno. Ou seja, se a família precisa levar a criança a terapias e atividades não liberadas, essas precisam ocorrer fora do horário normal da escola. Nas escolas privadas, situações em que a família não consegue buscar a criança no horário delimitado implicam no pagamento de mais taxas além das mensalidades já altas.

Há também o estabelecimento de regras e rotinas que afetam sobremaneira a rotina familiar, sem consultar as famílias. No início do ano várias mães relataram ao Plural que as creches municipais decidiram determinar o desfralde das crianças, uma decisão que deveria ser dos pais e não da escola. Fazer o desfralde pontualmente assim não só nem sempre é compatível com a filosofia familiar (muitos pais e mães optam por metodologias mais acolhedoras nesses casos), como também exige uma rotina intensa de acompanhamento da criança.

Como mãe já presenciei todo tipo de desrespeito a rotina e forma de criação por outros adultos. Já vi escolas que empunham orações na hora do lanche em escolas não devocionais, outras que ofereceram alimentos incompatíveis com a dieta da criança (inclusive para crianças alérgicas), que mudaram a criança de atividade sem autorização da mãe e muito mais.

Se há interesse social na maternidade, a sociedade precisa com urgência perceber que vai ter que pensar em maneiras de aliviar o fardo que isso representa e reconhecer a importância do que as mulheres fazem. É preciso ampliar os serviços de atendimento e cuidado com crianças e torná-los compatíveis com a jornada de trabalho comum. Criar formas de flexibilizar a rotina para acolher situações especiais.

E no caso de crianças com necessidades específicas, o país precisa pensar em como remunerar as mães de várias faixas de renda familiar que ficam em casa dedicadas a elas. Hoje, no Brasil, temos tal incentivo financeiro apenas em casos de pessoas com deficiências que as tornem totalmente dependentes e para famílias com renda extremamente baixa.

É preciso com urgência parar de aplicar a mães que precisam do ensino em tempo integral julgamentos morais irrelevantes e violentos, que tratam essa necessidade como luxo e não como essencial como de fato é. Os serviços de atendimento a saúde públicos e privados devem atender crianças e seus responsáveis com horário marcado e sem atrasos absurdos e as filas de atendimento em processos diagnósticos devem ser reduzidas.

O Estado deve fazer um esforço de comunicação para conscientizar empregadores de que é de interesse deles que as mães possam atender seus filhos e que não é justo serem prejudicadas em seus trabalhos por isso. E também a população em geral sobre a importância do trabalho das mães. Mães empreendedoras devem contar com linhas de crédito específicas, para poderem ter mais liberdade financeira na construção do negócio sem deixar em segundo plano a vida familiar.

Os profissionais das escolas, serviços de saúde etc devem ser devidamente preparados para deixar de centralizar cobranças apenas nas mães, tornando os pais tão responsáveis quanto elas pela rotina dos filhos. Além de trabalhar para tornar suas ações mais amigáveis e respeitosas para com diferentes realidades familiares.

Por fim, é de fundamental importância que se abram espaços para que as mães possam ter voz e sejam ouvidas em suas demandas. E que esse espaço seja cercado de acolhimento e não julgamento. Se estamos aqui trabalhando para garantir o crescimento saudável do futuro da nação, que sejamos respeitadas como tal e não tratadas como párias sociais.

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