A performance da fila da vacina no Brasil

Em tempos de fila para tomar vacina contra a Covid 19, cada vez mais escassa no Brasil, como o eram os bens de consumo na Tchecoslováquia, a performance de Roman Ondák parece fazer algum sentido

Muito antes de a fila da vacinação contra a Covid-19 estrear por aqui, a performance Good Feelings in Good Times (Bons sentimentos em bons tempos), do artista eslovaco Roman Ondák (1966), estreava, no ano de 2003, no museu Kölnischer Kunstverein, em Colônia, na Alemanha. Na performance de Ondák, uma fila era artificialmente formada por artistas ou pessoas contratadas pelo museu. Mas, como aconteceu em outras performances, a fila não precisa necessariamente se localizar dentro de museus ou galerias de arte, nem ser formada apenas por pessoas contratadas.

Nessa performance, em resumo, as pessoas se enfileiram diante de obras de arte, de entrada de salas, de portas fechadas etc., e simplesmente aguardam na fila da forma mais natural possível, como pede o artista eslovaco. Quem vê a fila, dependendo do lugar onde ela se forma, muitas vezes se une àquelas pessoas sem ter ideia do local para onde ela vai ou do porquê de estarem ali. Parece que somos levados a fazer o que a maioria faz.

Good Feelings in Good Times evocaria as lembranças que o artista guardava das longas filas que se formavam nas portas dos supermercados da antiga Tchecoslováquia, então um país comunista, onde os bens de consumo eram muitas vezes escassos e disputados pela população. O que de certa forma destacaria a ironia de seu título. 

Em tempos de fila para tomar vacina contra a Covid 19, cada vez mais escassa no Brasil, como o eram os bens de consumo na Tchecoslováquia, a performance de Ondák parece fazer algum sentido. Entra-se nela, mas não se sabe onde ela vai parar ou o que nos espera no fim, se é que podemos esperar alguma coisa, uma vez que, por aqui, muitos têm chegado no fim da fila e, em vez de receber a dose da vacina, recebem somente a picada da agulha. Talvez seja esse o auge da performance brasileira à moda de Ondák, a qual se alimenta, como toda performance, do inusitado.

Good Feelings in Good Times, performance de Roman Ondák.

Nossa exibição acrescenta ainda algo com o qual a performance do artista eslovaco não contava: os fura-filas. Em alguns estados e municípios são eles os grandes performers dessa apresentação tropical. Se para Ondák os fura-filas seriam o imponderável da performance, aqui, a atuação deles já era prevista. O inesperado seria todos permanecerem em seus lugares na fila.

Mas é bem verdade que a fila brasileira para a vacina tem algumas regras que levam em conta a idade e o grupo prioritário ao qual pertence o cidadão. O primeiro critério, idade, é objetivo, já o segundo, prioridade, deixa espaço para discussão, pelo menos no Brasil, que costuma priorizar ricos e bem formados: psicólogos, juízes, promotores, políticos, empresários… Os professores não estão incluídos nesse grupo, ainda que reabrir as escolas seja uma prioridade. E como lidamos com esse paradoxo?

Nessa fila confusamente formada, resta saber quando e se vamos de fato ser vacinados. Parece que as vacinas terminarão muito antes da metade da fila. Mas vamos permanecer nela: os que têm condições financeiras ficarão em seus lugares até que as empresas privadas comprem suas doses e lhes vendam sem precisarem entrar em fila alguma. Para os demais, restará esperar. Nesse cenário ainda ficcional, o título da performance de Ondák comecará a fazer sentido aos afortunados, pelo menos a primeira parte dele, que fala de bons sentimentos (Good Feelings). Quanto à segunda parte dele (Good Times), vai depender de quando voltarão a viajar livremente. Não me refiro a voltar a festejar, porque os “afortunados” nunca deixaram de festejar, nunca deixaram de fazer festa, mesmo sem vacina e sem máscara. Aliás, nessas festas, a máscara parece ser acessório obrigatório apenas para os serviçais (nem tanto para protegê-los, mas para protegerem os patrões), basta ver algumas fotos da festa em comemoração à vitória de Arthur Lira na Câmara dos Deputados.  

Good Feelings in Good Times permite ainda uma reflexão sobre o tempo, já que, como afirma o artista, numa fila o tempo adquire uma característica própria e ganha status de protagonista. Nesta época de pandemia, o tempo já é o grande protagonista: ele pode salvar vidas se soubermos administrá-lo com agilidade e rapidez, como, por exemplo, na distribuição de oxigênio. Decisões que impliquem a suposta volta da vida normal, da vida pré-pandemia, apesar das mais de 200 mil mortes só no Brasil, requerem mais tempo de todos nós.

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