Dear white people, estamos trabalhando

Talvez seja o caso de esclarecer os diferenciados que ninguém está em casa, no sofá, sem fazer nada

Curitiba é uma cidade maravilhosa. É a terra do Dalton Trevisan, da primeira Universidade do país e da Lala Schneider. Mas a cidade também ostenta um apego a um passado “europeu”, um quê de querer não ser parte do país, um pezinho nessa ideia de que somos brancos, loiros, de olhos claros, portanto melhores.

Esse outro lado volta e meia aparece por aí se dizendo diferenciado. Não são os filhos dos imigrantes italianos, poloneses, ucranianos que herdaram dos avós os calos nas mãos, a batalha diária para ter uma vida digna e a consciência de que se a descendência está aqui é porque no passado fugiu da Europa para escapar do nazismo, do autoritarismo.

Pois bem, não vou dar cartaz para quem fala absurdos, até porque o Museu do Holocausto já falou eloquentemente sobre o assunto. Mas queria aqui me dirigir a essas pessoas, os “descendentes”, os que se orgulham da pele branca, dos olhos claros para esclarecer algo que me pareceu pertinente. Como branca de olhos claros, penso que seja mais fácil para vocês entenderem:

Aí vai: dear white people, não tem ninguém “sem trabalhar” no isolamento. A maior parte das pessoas de baixa renda de Curitiba trabalha no setor de serviços ou no comércio. São balconistas, caixas, porteiros, trabalhadores domésticos. E nada disso parou. Essas pessoas ainda estão aí para abrir portas e carregar pacotes para vocês.

Outra parte desse pessoal também não parou, mas viu a demanda por seus serviços cair, como é o caso dos motoristas de táxi e Uber. Mas como as despesas não diminuem na mesma proporção é provável que estejam tentando outras formas de ganhar dinheiro.

Curitiba tem cerca de 50% de sua população em isolamento. Não temos como saber quem são (não, não vamos por fita vermelha em ninguém), mas podemos arriscar com certo grau de certeza que a maior parte é da educação, uma vez que as escolas e universidades fecharam.

Parte dos trabalhadores da educação perdeu o emprego ou teve salário reduzido e está agora dando aulas online, reforço escolar e fazendo outros trabalhos acadêmicos de casa para dar conta das despesas, que são cobradas, devo contar, todos os meses, tenha você uma fita vermelha ou não.

Quem não perdeu o emprego está se virando para transformar o ensino presencial em “EAD”, “online”, “digital”, o que talvez vocês não saibam, mas dá muito trabalho. Alguns pais de alunos que, imagino, têm uma noção distorcida do que é trabalho intelectual (e ensinar é um trabalho intelectual, não custa nada lembrar) e fazem exigências cada vez mais absurdas para esses profissionais.

(Já ouvi dizer que há pais exigindo que o professor fique online durante todo o período de aula, à disposição das crianças, que obviamente jamais vão ficar 6 a 8 oito horas por dia diante do computador falando com o professor).

Há também quem realiza tarefas administrativas, os profissionais liberais. É o pessoal de jornalismo, marketing, arquitetura, engenharia, administração, contabilidade que continua trabalhando, só que de casa.

Há quem não “trabalhe” e esteja em isolamento? Certamente. Tem os aposentados, os que estão em casa cuidando de familiares adoecidos, idosos, crianças. Esses nunca param de trabalhar, na realidade, porque, veja só, cuidar é um trabalho sem fim.

Eu podia continuar, mas acho que deu para ter uma ideia, né? O fato é que pouquíssimas pessoas na cidade têm dinheiro (seja próprio, seja de outros) para “não fazer nada”. Os demais precisam ganhar o suficiente para manter a luz acessa, a água chegando, o teto sobre a cabeça e o arroz e feijão no prato.

Quando você não tem uma fonte infinita de dinheiro e vive de ser remunerado pelo trabalho que realiza, as coisas são muito simples. Se você paga aluguel, tem onde morar. Se não, não tem, te colocam na rua, apreendem teu carro, cortam a luz. Deu para entender a lógica, né?

Isso acontece inclusive na favela, veja só. Paga-se aluguel para morar lá. Paga-se água, luz, pelo crédito no celular para combinar a diária com a patroa.

E não, não tem Bolsa Família ou caridade do governo que banque todo o custo de viver, de comer todos os dias, de ter remédios quando se está doente. O pão, vocês devem saber, está caro, seja de fermentação natural ou não.

Ah, mas, sim, claro, tem algumas pessoas que não trabalham. Os aposentados por invalidez, as pessoas com deficiência grave, idosos, crianças. Talvez vocês não saibam disso, mas o valor dessas pessoas na nossa Constituição não é definido pelo quanto elas fazem ou não algo “produtivo”. Na realidade, a lei estabelece que se deve zelar pela dignidade das pessoas e proteger aquelas que momentaneamente ou permanentemente estão em risco.

É uma coisa civilizatória, sabe? Se no passado era preciso por crianças na primeira infância para fazer a colheita junto com o resto da família, o mundo evoluiu, temos teleconferência com vídeo, carros elétricos, realidade aumentada e, para muitos, a consciência de que a vida moderna não comporta escravidão nem relegar ninguém a miséria.

Claro, vocês devem estar confusos porque o ano de 2020 não tem aquele ambiente Jetsons com carros voadores e um robô para substituir as domésticas. O caso é que, veja bem, mesmo com o robô as domésticas não desaparecem. Aliás, por uma ironia da modernidade, em muitos casos a doméstica é mais barata que o robô.

Só que ela tem esse defeito horroroso de adoecer também. E se ela se contaminar com o novo coronavírus e você também, a vaga de UTI que poderá salvar vocês é exatamente a mesma. Injusto, né? (Quer dizer, justíssimo, mas estou tentando falar no mesmo idioma que vocês).

É isso que queremos dizer quando falamos em possível colapso do sistema de saúde: vamos ter muita gente doente, e ao mesmo tempo. Nesse cenário, SUS e saúde privada serão tudo a mesma coisa e estarão todos sobrecarregados. Não haverá vôos para ir se tratar em Miami, porque os hospitais lá também estão lotados.

Então, para evitar essa situação desagradável as pessoas estão em casa, trabalhando, e cuidando dos seus. Um desses pode ser quem não vai ficar doente, garantindo, de repente, um leito de hospital vazio para quando você precisar sem que os médicos precisem decidir entre te atender ou atender a doméstica, o motorista de aplicativo, o médico ou qualquer outra pessoa doente.

Pensando nisso talvez seja o caso de nós, os que estamos isolados, nos identificar sim. Não para que nos seja negado qualquer serviço, porque nós continuamos a contribuir com a sociedade, mais do que vocês, na realidade. Mas para que vocês, quem sabe, possam nos agradecer. Ou nem precisa falar nada. O silêncio, como dizem, é de ouro.

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