Podcast – Sine Ira: Impuros

Nós, os impuros, os que não se explicam em poucas linhas, os que não se identificam de imediato, os que não se reconhecem por nenhum código secreto

Minha origem e minha trajetória são uma barafunda, como não poderia deixar de ser. Filho de mãe parnanguara, que é filha de uma bugre com um português; filho de pai cearense, filho de um sefardita longínquo, cujos antepassados provavelmente chegaram por aqui  junto com os holandeses e de avó com raízes italianas do sul, mulher austera com lindos cabelos negros e sobrancelhas grossas. Fui educado indo às sinagogas e às igrejas católicas, com medo de morder a hóstia e mais medo ainda de  tomar passes no terreiro da minha tia e vê-la recebendo o poderoso seu 7 Deus, desde cedo, foi um algo bondoso e punitivo, vigilante e alcaguete, quebra-galhos e confidente, mistério e cansaço. Logo que pude, deixei-o de lado. Menos a sua sombra.

Filho de militar, aprendi as regras que não precisam ser pensadas nem discutidas; vivendo em frente a uma favela, em uma vila pobre de casas velhas, aprendi as regras da rua, que obrigam a pensar intensamente e ter reflexos rápidos. Adolescente, já quase sabendo quem eu era no complexo jogo de signos da minha vila, meu pai é transferido e venho para o sul maravilha, virar o “ceará”, amargar os risos e brincadeiras de uma classe média que não compreendia o rapaz magrinho e esquisito que ia a semana inteira com o mesmo casaco para a aula. Reaprendi os códigos e reciclei minhas raivas, sobrevivendo às novas exigências de uma cidade feia cheia de gente bonita. E tornei-me adulto, aprendendo o que não admirava mas que sabia que um dia seria útil para alguma coisa.

Sou filho de uma família pobre e conservadora, reacionária até. Incrível ouvir minha mãe de 81 anos dizer que “odeia o PT” ao mesmo tempo que diz que teve de largar a escola aos 10 anos de idade porque a minha vó só tinha dinheiro pra comprar uniforme para uma das filhas. Meu pai, militar que exerceu uma função civil a vida inteira, que nunca esteve perto de uma guerra ou de uma briga ou mesmo de uma discussão mais ríspida, perora feliz que agora o país vai dar certo e a lógica militar vai colocar (de novo)  nosso povo nos eixos. O tempo passou no mundo mas não afetou a visão de mundo deles.

E eu absorvi tudo o que pude deles, buscando entender essa coerência religiosa de não arredar pé das ideias que cultivam há tantas décadas, mas quis também saber o que havia atrás do espelho: fui do trotskismo pedante  do adolescente cheio de fantasias e de ressentimento ao petismo delirante do início do século, até ancorar (para um breve descanso) no keynesianismo claudicante onde me encontro agora, lutando por Estado Constitucional e igualdade material de oportunidades, mas tendo urticárias com discursos sobre luta de classes em um país no qual parte considerável da classe trabalhadora grita “mito, mito, mito.”

Tornei-me uma pessoa  que não se define em lugar algum que querem colocá-lo, porque a vida não é um jogo de peças e casas com cartas dizendo “avance duas casas” ou “ fique duas rodadas sem jogar”. Acompanho  os jovens e não vejo um futuro, olho os velhos e não vejo um passado, vejo somente o agora e suas múltiplas possibilidades de amanhãs e de ontens e, por isso, tenho um olhar enviesado de tudo, fruto dos filtros com os quais me criei e me crio, multifocais, embaçados e quase todos já fora da validade.

Olho as tribos e desejo a ágora; olho a miséria e lembro das promessas do esforço pessoal e recompensa financeira; olho o clima maluco e as florestas em desespero e penso na tecnologia libertadora. Não acho a resposta em nenhuma doutrina ou livro mágico, curso online revelador ou palestra revolucionária. Faço parte do mundo dos impuros, desconexos, bric a bracs, mosaicos de peças perdidas e involuntariamente reunidas em um arranjo provisório. E é desse desencontro de tantas ideias que precisam ser ouvidas com atenção e respeito  que eu acredito fortemente que encontraremos uma saída. Ou, principalmente, que encontraremos as não-saídas.

Bobbio, em um dos seus livros, todos imperdíveis, falou sobre as três visões sobre as crises: a da mosca na garrafa, na qual acreditamos que só alguém de fora poderá nos salvar; a do peixe na rede, que diz que de nada adianta nos debatermos porque morreremos sem ar inapelavelmente; e a do labirinto, que afirma que a saída só nós podemos encontrar, por tentativa e erro, erro, erro e erro.

Mas com uma vantagem: os caminhos que percorremos e que dão em muros herméticos, não precisamos percorrer novamente. Podemos não saber ainda onde está a saída, mas vamos aprendendo onde ela não está. E com isso vamos mudando, adaptando-nos e renovando nossas energias para continuar buscando, sem carregar sacos de ossos em nossas costas e sem apagar diariamente nossas memórias. Nós, os impuros, os que não se explicam em poucas linhas, os que não se identificam de imediato, os que não se reconhecem por nenhum código secreto.

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