O vendedor que não desistia

Postado diante da mesinha mambembe armada em pleno calçadão, o homem fatiava uma cabeça de repolho com elogiável destreza. Enquanto reduzia a hortaliça a um amontoado de tiras milimétricas, apregoava o instrumento que tinha em mãos: “Vejam que maravilha da cozinha! Descasca a cenoura, corta a verdura! Olhem como é fácil!”. Embora estivesse vestido de maneira simples – tênis gasto, calça e uma camisa que parecia um tanto maior –, tinha a elegância de um maître. O produto que colocava à venda não tinha nada de sofisticado: consistia em um cabo plástico alaranjado que terminava em uma forquilha, na qual estava afixada uma lâmina afiada. Nada mais. Mas a forma como ele o anunciava – sempre com voz clara, pronunciada com entonação de locutor e ornamentada por um sorriso de indelével confiança – fazia crer que, de fato, se tratasse de um utensílio indispensável.

Eu já havia topado com o vendedor em outras ocasiões – na entrada de um supermercado, nos arredores da feirinha do Largo ou ali mesmo, no calçadão –, mas naquele comecinho de tarde ele me chamou a atenção em especial. Talvez porque o entusiasmo com que enumerava as qualidades do item que vendia contrastava com os modos insossos de seus colegas ambulantes: uma jovem a serviço de uma operadora de celular, um rapaz que oferecia carregadores para smartphones e um homem de maus bofes, que portava uma placa em que se lia “compro ouro”. Esses pareciam estar ali a contragosto, entediados e sem o mínimo resquício de orgulho do próprio ofício, ao passo que o homem continuava a bradar as maravilhas do descascador de verduras, como se desempenhasse a mais nobre das profissões.

Não vendeu um

descascadorzinho que fosse.

Nem por isso, no entanto,

o homem esmoreceu.


Parei para contemplar. Apesar de todos os salamaleques do mercador e de sua apresentação resoluta, quase ninguém dava por ele. Nos cinquenta minutos em que fiquei ali, de butuca, apenas duas freiras e uma senhorinha desviaram o olhar para o vendedor por uns poucos segundos, mas nem sequer chegaram a parar para ver o funcionamento do utensílio fabuloso. Não vendeu um descascadorzinho que fosse. Nem por isso, no entanto, o homem esmoreceu. Resiliente, permaneceu anunciando seu produto, qual falasse para um público seleto que lhe desse plenos ouvidos. Apesar de tudo – ou melhor, do nada – ele seguia, com fé inquebrantável.

Quando o relógio me chamou de volta à rotina, parti, dividido. Por um lado, sentia pena do pobre homem, porque apesar de toda devoção que dispensava ao seu ofício, o sucesso profissional lhe passara longe. Fico me perguntando se naquele dia ele voltou pra casa com o gosto do fracasso na boca, depois de ter passado o dia em pé, gastando seu latim ininterruptamente e em vão. Não deve ser fácil. Por outro lado, no entanto, era louvável a dignidade que aquele camelô mantinha, cumprindo sua ventura e entregando o melhor de si. Creio que, apesar de tudo, naquela noite ele deve ter dormido o sono dos justos e, nos dias seguintes, persistido até tempos mais favoráveis.

Agora por esses dias, no finzinho de dezembro, lembrei-me do ambulante durante uma conversa com ela, enquanto olhávamos o ano em retrospecto, em uma espécie de balanço. Foram meses difíceis, é escusado dizer. (A vida, às vezes, nos mete em um emaranhado tal, que nem um abraço é capaz de proteger). Para ela, no entanto, o fardo parece ter sido maior. Alguns acontecimentos quase a tiraram de seu curso, enquanto, em outra seara, outros quase a puseram estática. A quantos não devem ter ocorrido dissabores em série, de forma semelhante? Ao longo da prosa, o episódio do mercador do calçadão emergiu como ensinamento. Pode soar elementar, mas em meio a turbilhões acabamos por nos esquecer do óbvio. O que eu queria que ela se lembrasse neste novo ano é de que há ocasiões em que nos cabe apenas isso, mesmo: pôr um sorriso no rosto e seguir com nosso propósito com determinada convicção e integridade. Há que persistir. Como o vendedor.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima