Uma solução para a humanidade

A luz das lanternas é refletida pelas botas pretas. Os pés caminham rentes ao gradeado cinza que antecede as escadarias do TUC, no centro da cidade. A vala é responsável pelo escoamento da água que desce do Largo e chega às escadarias da passarela subterrânea, mas não é água que os dois policiais procuram entre as sombras do gradeado. Mais atrás, a sirene da viatura vazia faz uma ronda agitada, mas silenciosa. A luz avermelhada ilumina as três motos estacionadas em desordem na calçada.

Conto as possibilidades: oito policiais nas redondezas. Ao alcançar os pontos de ônibus que se estendem ao longo da Travessa Nestor de Castro, encontro o que procurava. Ao passar por entre os prédios me deparo com os seis policiais restantes. Eles se dispersam em um círculo – no centro, um agente posicionado ao lado de um rapaz. Viram-se todos de costas para a ação central, enquanto caminho em direção à rua. No entanto, meus passos hesitam, observo a cena.

Ilustração: Alberto Benett

O moço, de tez mais escura que a minha, traja boné, shorts e um moletom largo – tons de azul e branco mesclam-se contra a parede cinza do edifício. Mesmo com a fraca luz noturna, consigo ver o brinco reluzente que traz na orelha esquerda. Os olhos são duas fendas que se contorcem em um choro incontido, a boca retorce um “Pelo amor de Deus” angustiado. Cravo os pés no chão, me sinto cúmplice. Empaco.

A dois metros de distância, o policial de bigode que fixou seu posto na linha dos meus passos coloca os braços nas costas. O gesto se estende, enquanto crava os olhos em mim, estufa o peito e questiona: “O que foi, moça?”. As palavras têm um ar entre o desafio e a provocação. Sinto medo. Me retraio por um segundo, mas quando vejo, meu próprio peito se ergue, e meus pés giram em sua direção: “O que está acontecendo?”.

“É uma operação policial”, ele responde quando escuto um estralo – provavelmente o contato brusco entre a mão do policial e o rosto do moço. Ainda no centro da roda, o agente dispara despautérios. Encaro meu inquisidor, mesmo sem ver a cena, toda a Travessa pode ouvir os xingamentos. “Hum, e por que o moço está sendo xingado?”. Meu desprezo jorra em torrentes. “Porque ele é um traficante, moça”. É um jogo de palavras que nada dizem, mas tudo significam. “E é preciso xingar?”. “Não, mas não acharam uma solução para a humanidade ainda” – uma verdade que constato ali mesmo, naquela calçada de petit-pavé, no centro de Curitiba. “É, não acharam, mas não precisa piorar.”

Volto-me para a rua, atravesso o asfalto em direção à estação tubo. Meu coração acelera, minhas pernas tremem. Trago comigo, às mãos, um grosso livro, e muito medo.

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