Recentemente, o IBGE divulgou o primeiro levantamento da população homossexual e bissexual brasileira, declarando que em torno de 2% das pessoas entrevistadas se autodeclararam de tal maneira. O próprio IBGE informa a alta probabilidade deste número estar subnotificado.
“A gente não está afirmando que existem 2,9 milhões de homossexuais ou bissexuais no Brasil. A gente está afirmando que 2,9 milhões de homossexuais e bissexuais se sentiram confortáveis para se autoidentificar ao IBGE como tal”, disse a analista da PNS Nayara Gomes, em entrevista realizada pela Agência Brasil.
A sugestão de que o percentual seria pequeno levanta um problema que é grande: a ideia de que por ser um grupo ínfimo, defender políticas públicas seria irrelevante, um “gasto desnecessário” para essa população.
Isso não é apenas uma conclusão superficial da análise mal-intencionada de dados, em cima de uma pesquisa subnotificada. Como se isso em si já não fosse o bastante, estamos lidando com uma distinta abordagem consciente do negacionismo: a trivialização.
Negacionismo está feio. Ao menos quando dito em voz alta. Muitos ouvidos se sensibilizaram com o som estridente da negação direta. A música que está harmonizando a negação é aquela que aceita parcialmente a memória histórica, mas diz que “não foi bem assim”.
Ou seja, é um negacionismo que aceita que pessoas LGBTQIA+ existem (devo dar os parabéns?), mas que questiona o quão relevante são as necessidades dessa população em relação ao todo. Se a comunidade LGBTQIA+ é apenas 2% da população total, isso significa que descartar estas pessoas não é algo tão grave, como se dignidade humana pudesse ser medida com percentual.
Esse negacionismo não é distante de alguns negacionismos do Holocausto, por exemplo, que mira muitas vezes não pra negação do evento histórico ter acontecido, mas para a sua proporção. Quem nega que foram 6 milhões de judeus não está preocupado com o cálculo exatos de mortes, muito menos com as histórias de vidas, antes, em tornar o assunto descreditado. Distorcer os números com o propósito de diminuir a importância. Aí reside um grave perigo.
Não dá pra se enganar. O negacionismo é perigoso porque normaliza a indiferença. Uma vida tem sua dignidade não pelos números que lhe são rotulados, mas porque dignidade é algo inerente.
Apontar esse comportamento, consciente ou insconciente, de negacionismo, é denunciar uma perversidade que afirma que algumas vidas tem valor e outras não. Mas também é sobre poder, sobre negar que a cisheteronorma é a responsável pelas violências contra a comunidade LGBTQIA+.
Os defensores dos supostos 98% inconclusivos hipernotificados cisgêneros e heterossexuais negam não apenas a violências contra a comunidade LGBTQIA+, mas negam principalmente sua responsabilidade ativa na manutenção desta violência estrutural.
Ninguém está acusando indivíduos cis e héteros de “odiarem homossexuais”. A denúncia é coletiva e estrutural: é sobre ajudar aliados cis e héteros a reconhecer sua participação individual na manutenção das vulnerabilidades da população LGBTQIA+, e somente quando se reconhece este poder, é que é possível utilizá-lo para mudar, reformar ou transformar.
O negacionismo da cisheteronormatividade trivializa as vidas LGBTQIA+ como se fossem poucas, descartáveis, desnecessárias, irrelevantes. Quando essa narrativa é normalizada, as violências também são. E essa perversidade colocada num pedestal precisa ser denunciada.
O mês do orgulho não pode ser outra coisa se não um lembrete constante de sua origem: o espírito iconoclasta de Marsha P. Johnson, uma mulher trans, negra, soropositiva, bissexual, que soube a vida toda o quão sua existência era trivializada. Com um tijolo arremessado, ela não apenas enfrentou uma injustiça de sua época, mas algo muito maior, a quebra do silêncio diante das narrativas que normalizam a vulnerabilização da comunidade LGBTQIA+ e de tantas outras.
O mês do orgulho deve ser celebração de nossas vidas e existências, continuamente trivializadas, mas só pode ser celebração se também for protesto contra as forças que buscam negar e trivializar vidas como se fossem números descartáveis. O orgulho LGBTQIA+, nas palavras de um ativista gay do século 19, Karl Heinrich Ulrichs, é um “golpe na hidra do desprezo público”, uma resposta corajosa ao veneno que nos injetam da vergonha, do pecado, da doença e da criminalidade, uma afronta às mentiras normalizadas.
Que o nosso orgulho nunca deixe de ser iconoclasta.
Sobre o/a autor/a
Marcio Albino
Jornalista por formação. Foi educador social LGBTQIA+ e de HIV/Aids em organizações como Grupo Dignidade e Aliança Nacional LGBTI+. Presta consultoria LGBTQIA+ para o Museu do Holocausto de Curitiba e Memorial do Holocausto do Rio. Membro do coletivo Gaavah.