O segredo

Esse não é um país no qual possamos dizer com convicção: “isso não tem como acontecer, imagina!”

Muitos países passaram por tragédias e catástrofes e conseguiram sair maiores dos seus infortúnios. Muitas sociedades mudaram radicalmente seu conceito de relacionamento coletivo depois de décadas de violência e autoritarismo e tornaram-se ambientes convidativos para todos os que procuram paz e incentivo para prosperar. Muitos governos nefastos foram superados e jamais esquecidos, tornando-se avisos permanentes do que não pode ser repetido, como marcas indeléveis do que qualquer um pode se tornar se não souber que há um compromisso maior com o Outro que precisa ser respeitado e com o custo de privilégios que poderiam ser mantidos se e somente se vivêssemos como cegos e surdos em meio aos gritos dos desesperados.

Estes são os países do futuro.

E parece que nós não fazemos parte desta lista.

Primeiro, foram quase trezentos e cinquenta anos de escravidão. Até aí, não há como mudar o passado. O problema é que passamos o tempo restante tentando fingir que nunca tivemos escravidão e que o racismo, o preconceito, a desigualdade fundada na raça é uma invenção, uma desculpa de “fracassados”, um motivo para viver às expensas do Estado. E assim o passado vai se reatualizando, em cada negação, em cada diferença social gritante, em cada estatística da violência, da escala profissional ou acadêmica. Como se fosse só coincidência, sem responsáveis e sem contas a pagar.

Ao mesmo tempo, nunca tivemos uma sociedade organizada para garantir o bem-estar coletivo, somente umas plantinhas cívicas insistentes, sobrevivendo em meio ao asfalto feroz. A ausência geral do sentimento de que há coisas que não poderiam existir, como as chacinas nas favelas, o desmoronamento anual das encostas dos morros com casas e gente junto, as hecatombes ambientais diárias, o trabalho análogo à escravidão no campo e na cidade, nas confecções do centro velho ou nas cozinhas das casas de condomínio, a precariedade do ensino público com professores formados em cursos à distância, os ataques à Ciência e a à Pesquisa, o abandono do saneamento básico, até mesmo o estado das calçadas nas cidades – o que parece tão pouco diante de tantas urgências – são provas de que vivemos em uma terra de ninguém, e sobrevivemos graças às amizades, aos vizinhos e simpatizantes. Fora desse círculo, não há garantia de quase nenhuma civilização.

Esse não é um país no qual possamos dizer com convicção: “isso não tem como acontecer, imagina!”. Por aqui, tudo pode acontecer. Pessoas instruídas negando a Ciência, advogados defendendo a quebra da ordem Constitucional, religiosos à favor da pena de morte e dando vivas a torturadores, artistas aplaudindo o fim dos benefícios culturais, professores apoiando a polícia dentro da escola, políticos eleitos querendo o fim das eleições seguras, empregados precarizados defendendo a diminuição dos direitos sociais, entregadores de bicicleta comemorando o empreendedorismo. Os exemplos encheriam páginas. Somos um país à deriva.

O mais assustador nisso tudo, porém, é a sensação de impotência. Pensar que nada mais pode ser feito parece ser o grande propósito dessa gigantesca instalação perversa. Para os que exploram e lucram com um país sem vergonha e sem pudor, não basta apenas o que ganham, exageradamente. A cereja do bolo é o poder de olhar em nossa face, nos nossos olhos e dizer: “pode gritar, pode espernear, pode denunciar. Qualquer alteração será apenas uma outra versão do que você está vendo. Nada vai mudar, nada precisa mudar porque não há gente suficiente que verdadeiramente se importe.”

A impotência diante do “ninguém suficiente que verdadeiramente se importe” é feroz, porque você se importa, seus amigos se importam, seus vizinhos, o pessoal que se encontra na livraria, a turma que assiste os mesmos filmes na cinemateca, e depois toma um chope no bar, ouvindo um jazz. Também tem o pessoal da pós graduação ou do grupo de psicanálise, a turma da horta coletiva, do sopão da madrugada, do cursinho solidário, das ações propositivas, dos estudos sobre empreendedorismo social. Esse pessoal todo se importa. Por eles, para nós, o mundo seria diferente. Mas, e daí?

Tudo leva a crer que um segredo foi revelado, o que explica a atitude despudorada desses cupins do país que sempre buscaram agir nas sombras, discretamente, mas que agora escancaram suas intenções em meio a gargalhadas indecentes. O segredo de que nossos esforços nunca foram suficientes e que nossas boas intenções nunca passarão de bolhas ao vento, andorinhas roucas que jamais anunciarão um novo tempo. E que o banquete pantagruélico estará à disposição dos que dele se servem sem se importar com o amanhã, porque amanhã tudo isso será um deserto cortado pelas longas sombras dos destruidores partindo em seus jatinhos de último tipo.

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