Podcast – Currículo

Olho-me no espelho e só me enxergo bem quando apago a luz

Nasci com o cordão umbilical amarrado no pescoço. A parteira murmurava: “vai morrer, coitadinho, vai morrer”. Não morri. E ganhei um mote para começar a contar minha história:  “já nasci com a corda no pescoço”. E também para afirmar uma qualidade insuspeita: não tem desafio que eu não saiba dar conta.

Sou filho caçula e fui  muito tímido na infância e na adolescência. Sempre fui gordinho e desajeitado para os esportes. Aos olhos dos outros era um menino sem graça e por isso sofri todo o tipo de bullying. Depois de lamentar em vão, aos poucos aprendi a rir de mim mesmo antes dos outros e assim tornei o bullying dos outros em piada velha para mim. Eu não me deixava em paz, não me cobrando, mas me conhecendo; não lamentando quem eu era, mas aprendendo sobre quem eu era. Não preocupado com o que os outros iam achar, mas procurando saber o que eu gostava em mim e o que eu não queria que fosse chamado de eu.

O que faz sobreviver é autocrítica, que é uma espécie de estética do erro. Os outros sempre vão atacar esses nossos erros e, de certa maneira, aprendi que isso é muito útil, exceto se somos muito negligentes e desatentos de não prestar atenção. Quando ficou claro que eu tinha mesmo muitos defeitos, foi uma libertação. Estava pronto para o mundo, um mundo que é como um gigantesco Lego. Faltava agora apenas achar os encaixes que só os meus defeitos permitiam que ocorressem e só os defeitos dos outros também possibilitariam. A união nunca é de partes perfeitas, lisinhas, sem ranhuras ou quebradinhos na ponta. Não segui em frente apesar dos meus detratores, mas graças a eles.

Minha família era pobre, o que me ensinou a diferença entre o essencial e o supérfluo e de como é preciso apreciar o essencial com rigor e o supérfluo com leveza. Mamãe podava as árvores do quintal e dizia: “se eu tiro o que não precisa terei sempre o que necessito”.  Nunca esqueci.

Cresci com pessoas que não queriam me educar e , graças a isso, aprendi muito. O lema de meu mundo juvenil era: “ninguém liga”. Cabia a mim fazer o calçamento e definir as esquinas e aprender que se o beco não tem saída ele não me ensina para onde devo ir, apenas aonde não devo voltar.

Tornei-me adulto muito cedo. Saí de casa aos dezoito anos e desde então sempre fui eu quem pagou as contas. Aprendi a não fazer dívidas e juntar primeiro e comprar à vista depois. E a gastar prodigamente o desconto que consigo nessas transações. Aprendi também a não guardar os recursos como quem esconde, mas como quem vela: dinheiro não pode provocar medo, mas é amigo da atenção.

Casei e descasei e tive um filho que tornou minha relação para sempre, para além de mim e dela. Casei de novo e ganhei duas novas filhas que vieram com a mudança. Papai e mamãe já estão perto dos 60 anos de casados e defendem a família tradicional, torcendo os narizes para essas modernidades. Sorrio feliz de não ter aprendido isso com eles. E abraço todos os meus amores como a criança que abre o presente de natal tão desejado.

Pensei que nunca viveria tanto e já passei bastante dos cinquenta e olho-me no espelho e só me enxergo bem quando apago a luz. O que não reflete sou eu, pulando amarelinha.

Trabalho com jovens e todos os anos eles têm a mesma idade e por isso vou me ajustando, rejuvenescendo também, na linguagem, nos gestos, na atenção. Olho para eles e dirijo-me para eles não como aquele que sabe e que agora vai mostrar como é, mas como aquele que se desculpa por tudo o que há e que busca parceria pra tentar melhorar um pouco do que sobrou. O jovem é muito receptivo quando percebe que os mais velhos são apenas uns desamparados, como a criança que quebrou, sem querer, o brinquedo que tanto ama. Desse apoio em comum, muitas vezes nasce uma história nova que irriga caminhos. E dessa forma vou apostando na eternidade.

Apresento esse currículo aos que quiserem empregar um pouco de seu tempo no trabalho de me ler e compartilhar comigo suas histórias de vida , como os vidrinhos coloridos do caleidoscópio. Candidatos a uma imagem bonita, comum, passageira.

Atenciosamente.

Eu.

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