Diga-me onde está teu telefone móvel e te direi quem és

Estamos ligados a essas maquininhas há muitos anos. Dormimos ao seu lado, trabalhamos com elas, almoçamos com as falanges em suas telas. Com elas nos informamos, nos comunicamos, nos tornamos pertencentes à comunidade humana. Quem é mais velho há de lembrar que nem sempre foi assim. E que antes de sua chegada, tínhamos muito mais liberdade para as coisas que nos interessavam

No seu livro recentemente publicado na Espanha pela prestigiada casa Herder Editorial, intitulado “Espejos: filosofía y nuevas tecnologias”, o filósofo italiano Luca Valera analisa o uso dos telefones móveis ou smartphones como uma metáfora da condição humana contemporânea. Acompanhando as reflexões de Byung-Chul Han, Valera demonstra como uso desse tipo de dispositivo acaba consolidando a ideia de uma “sociedade da transparência”, que torna tudo visível, estendido, planificado e disponível. Nenhum dos equipamentos tecnológicos de nosso tempo faz isso de forma tão ostensiva quanto o celular, pelo mero fato de que ele vai (está, permanece) conosco, daqui para lá, em todos os lugares. Estamos ligados a essas maquininhas há muitos anos. Dormimos ao seu lado, trabalhamos com elas, almoçamos com as falanges em suas telas. Com elas nos informamos, nos comunicamos, nos tornamos pertencentes à comunidade humana. Quem é mais velho há de lembrar que nem sempre foi assim. E que antes de sua chegada, tínhamos muito mais liberdade para as coisas que nos interessavam.

Para entender essa questão, Luca Valera recupera a pergunta de Deus a Adão, no livro do Gênesis: “Onde estás?”. Para ele, essa pergunta demonstra que a identidade dos sujeitos depende sempre de sua posição no mundo, ou seja, do lugar desde onde ele pensa e onde ele atua. Ora, para Valera, “Onde estás?” é uma pergunta que ganha um novo sentido quando pensada do ponto de vista tecnológico: com nosso telefone móvel podemos estar em diferentes lugares e, com isso, vivendo diferentes experiências que são, no fundo, diferentes formas de ser quem somos. Haveria, assim, uma novidade no que diz respeito à relação entre localização e individuação. Na medida em que podemos dizer que “onde está o smartphone aí está também o ser humano”, então é verdade que esse dispositivo, na medida em que nos possibilita diferentes modos de estar no mundo, também nos possibilita ser no mundo de diferentes maneiras. Ser e estar, nesse caso, são duas faces de uma mesma coisa: o lugar e nós que o habitamos nos fazemos mutuamente. O celular, nos nossos bolsos ou carteiras, favorece essas diferentes experiências. E isso não apenas falando em termos físicos: como janela para o mundo virtual, ele também nos dá a chance de vivermos vidas artificiais no cyberespaço.

É por meio desse dispositivo que o ser humano se encontra (se deixa encontrar) no meio do universo tecnológico, que inclui todos os mundos virtuais que esse mesmo dispositivo abre, promete e projeta, como espelho virtual do mundo. Com o telefone na mão, passamos informações sobre quem somos, onde vamos, quais são nossos gostos, desejos e interesses. E tais dados permanecem registrados num arquivo desconhecido e sobre o qual não temos nenhum controle, desde onde a nossa existência passa a ser dirigida por alguma força invisível que se aproveita da entrega voluntária das nossas informações para desenhar quem somos, orientar as nossas condutas e projetar o nosso futuro.

Desde quando Martin Cooper, um funcionário da Motorola, apresentou o Motorola DynaTAC, em 1974, considerado o primeiro celular do mundo, essa maquininha vem se tornando cada vez mais sedutora e invasiva, principalmente depois da sua popularização, no final da década de 1980 e sua transformação em máquinas inteligentes, depois do BlackBerry, de 1999. Ney Matogrosso, desesperado, reclamava ter sido trocado por uma dessas maquininhas, com a letra dos cariocas do Tono em seu Samba do BlackBerry: “De manhã, Quando ainda penso em acordar, Ela já está a dedilhar, Mexendo feliz no seu novo brinquedo; Eu não vou nem me comparar, Não tenho como disputar, Pois não mando e-mail, Só mando desejo. Essa é minha situação, Eu quero sua atenção e já fiz imagino até onde eu podia… Ela me trocara por um Blackberry; Ela me trocara por um Blackberry; Ela me trocara por um Blackberry”. A letra diz bem: os telefones celular são, no fundo, um sinal da nossa rendição total ao poder das Big Data ou das Big Tech. E o fazemos com um sorriso no rosto – afinal, não esqueça de sorrir a todo tempo, inclusive quando estiver sendo filmado. Os telefones celulares, assim, projetam uma nova versão da mobilização total do filósofo Jünger, segundo a sugestão de Maurizio Ferraris, autor do “Dove sei? Ontologia del telefonino”, publicado em italiano em 2005: eles escrevem, desde as nossas algibeiras, uma biografia que está na nuvem.

Com os telefones móveis temos, afinal, uma experiência de que tudo está, afinal, conectado com tudo o resto – ou seja, que Tudo [está] em todo lugar o tempo todo, como sugere o título do filme de Daniel Kwan e Daniel Scheinert. Com a tecnologia, nunca estamos separados das demais circunstâncias que formam o mundo e é isso que envolve a nossa experiência com os smartphones, esses aparelhos de concatenação recíproca que nos mantém ligados a tudo, precariamente interdependentes. Os telefones celulares são formas de interatuação constante, que nos conectam sem fio a um mundo virtual 24/7, vinte quatro horas, sete dias por semana, fazendo-nos disponíveis cem por cento do tempo, como sugere o título de Jhonatan Crary, 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Nesse cenário, quem não está disponível, fica sob suspeita: “o que você estava fazendo que não atendeu a minha ligação?”

Ora, essa hiperconectividade seria, para Valera, a experiência suprema do nosso século, no qual o cotidiano é marcado pelas interações tecnológicas. Com o celular, somos capazes de estar em vários lugares, tanto virtualmente quanto fisicamente, porque, segundo o filósofo, esse aparelho nos possibilita estar “contemporaneamente presentes em lugares distintos, com corpos distintos”, o tempo todo. O telefone móvel, por isso, produz uma mudança contínua em nosso modo de ser porque nele entramos para mostrar algo de nós, para contar aos outros quem somos (e, ao fazê-lo, para reformar o que somos, mostrando apenas os enquadramentos de nossa escolha). Nessas telas, somos induzidos pelos likes e o que somos passa a valer pelo número de interações que nossa imagem consegue angariar. Não vale, afinal, o que somos, mas o que em nós agrada (e engaja) os outros. Se antes dizíamos “diga-me com quem andas e te direi quem és” ou mesmo “Diga-me onde estás e te direi quem és” agora, por isso, devemos dizer “diga-me onde está teu telefone móvel e te direi quem és”. Dizer quem somos é dizer, agora, que estamos em muitos lugares ao mesmo tempo porque nos nossos bolsos está essa maquininha fantástica – e tão ambígua.

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